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Direitos socioambientais

Segundo monitoramento, construção da usina reduziu vazão do rio, e compromete reprodução de peixes. Em reunião com Ibama, ativistas pedem que licença de usina não seja renovada

Belo Monte: o que o povo quer é água no Xingu, diz ativista

Direitos socioambientais

Belo Monte: o que o povo quer é água no Xingu, diz ativista

Segundo monitoramento, construção da usina reduziu vazão do rio, e compromete reprodução de peixes. Em reunião com Ibama, ativistas pedem que licença de usina não seja renovada

Escrito em 28 de Março 2023 por
Rafael Ciscati

A paraense Josefa Câmara lembra que, anos atrás, naqueles momentos em que a tristeza batia forte, seu remédio predileto era um banho de rio. Josefa nasceu em uma família ribeirinha. Por anos, viveu às margens do Rio Xingu, próximo do município de Altamira. Era do rio, onde havia peixe em abundância, que vinha o sustento da família. “O rio era nosso sustento, nosso remédio e nosso lazer”, conta ela. Foi assim até 2014. Naquele ano, a família de Josefa foi removida das margens do Xingu para dar espaço à construção da Usina Hidrelétrica de Belo Monte. O mesmo já vinha acontecendo com outros ribeirinhos. Para manter a usina funcionando, a concessionária responsável pela hidrelétrica se comprometeu a cumprir uma série de condições, destinadas a reduzir os impactos socioambientais da obra. Entre elas, adquirir as terras para onde deveriam ser realojadas 292 das famílias que foram tiradas de suas casas. Quase nove anos se passaram, e elas continuam à espera das terras que nunca vieram. “Tivemos de nos mudar para a cidade, morar no asfalto. Muita gente não se adaptou e adoeceu psicológicamente”, conta Josefa, ativista do Movimento Xingu Vivo para Sempre. 

Desde que a usina de Belo Monte começou a ser construída, em 2011, ambientalistas e movimentos sociais apontam os danos  provocados pela obra na região conhecida como Volta Grande do Xingu. A área é tida como uma das mais biodiversas da Amazônia brasileira.  Para gerar energia mesmo nos meses de seca, Belo Monte desviou o curso do rio, e represou parte de sua água. Com isso, a obra desalojou famílias e  criou um trecho de 130 km de extensão onde o rio perde volume —  o Trecho de Vazão Reduzida.  Estudos independentes atestam que as mudanças ameaçam a sobrevivência das espécies nativas da região, e comprometem o modo de vida das populações tradicionais. 

O destino das famílias ribeirinhas e o impacto de Belo Monte sobre o ecossistema do Xingu estiveram entre os assuntos tratados por Josefa e outros ativistas durante uma reunião com o recém-empossado presidente do Instituto Nacional do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (IBAMA), Rodrigo Agostinho. O encontro aconteceu no dia 14 de março, em Brasília. Na pauta, estava a renovação da licença de operação da usina. O documento, emitido pelo Ibama, autoriza um empreendimento a funcionar. Precisa ser renovado periodicamente. A Licença de Operação de Belo Monte está vencida desde 2021. Para os ativistas, ela não deve ser renovada até que a Norte Energia, a concessionária que administra a hidrelétrica, cumpra as condições determinadas durante a realização da obra para reduzir os impactos negativos do empreendimento. 

Das 47 condicionantes, ativistas contam que a Norte Energia cumpriu integralmente 13. Segundo os presentes à reunião, Agostinho deu sinais de que concorda com as demandas dos movimentos sociais. “Ele deixou claro que a preocupação do Ibama será garantir a vida na Volta Grande do Xingu”, diz Ana Laide Barbosa, do Xingu Vivo, que também participou do encontro. 

 

Água para a Volta Grande

Além do cumprimento das condicionantes, os ativistas também pedem que seja revista a quantidade de água que a usina libera, diariamente, para o rio. Hoje, esse volume fica registrado em um documento que a concessionária chama de Hidrograma de Consenso, e foi acordado durante o processo de licenciamento ambiental de Belo Monte.  

Um estudo realizado por pesquisadores de diferentes centros de pesquisa — entre eles o Instituto Socioambiental, a Universidade de São Paulo e a Federal do Amapá — em parceria com as populações da região constatou que o volume de água do Hidrograma de Consenso é insuficiente para garantir a reprodução das espécies de peixe que vivem no rio Xingu. As conclusões do trabalho foram apresentadas a membros do Ibama também no dia 14 de março, durante um seminário na Procuradoria Geral da República. 

O trabalho monitorou, desde 2014,  29 locais onde  ocorrem acasalamento e desova de peixes — as chamadas piracemas. Os dados da pesquisa demonstram que, hoje, diversas piracemas da Volta Grande do Xingu não têm água, o que compromete a reprodução de espécies que só existem naquela região. 

No Xingu, o período de reprodução dos peixes vai de novembro a abril. É uma época de chuvas, em que o nível do rio sobe continuamente até inundar áreas de floresta chamadas de "igapós". É nesse período, também, que amadurecem os frutos das árvores nativas dessas regiões. Os peixes desovam nos igapós e seus filhotes se alimentam dos frutos maduros que caem na água. Trata-se de um equilíbrio fino, que a construção de Belo Monte perturbou.

Durante o período de desova dos peixes, o volume de água que corre pelo Xingu diariamente vai de 1942 metros cúbicos por segundo em novembro, quando começam as chuvas; a 13544 metros cúbicos por segundo em fevereiro. Essas são as médias históricas. A construção da usina fez a quantidade de água cair. Hoje, o Hidrograma de Consenso propõe que a vazão do rio em novembro seja de 800 metros cúbicos por segundo; em fevereiro, de 1600 metros cúbicos por segundo — um décimo do valor registrado antes da construção da hidrelétrica. 

 

Com menos água, os peixes não têm onde desovar. Com menos peixes no rio, fica comprometida, também, a sobrevivência dos povos indígenas e populações tradicionais da região. “Se não tem água, os peixes não têm o que comer. Se os peixes não conseguem mais comer eles não reproduzem. Se os peixes não comem nem se reproduzem, eles morrem. Os peixes estão morrendo famintos, assassinados por essa barragem”, afirma, no trabalho, Raimundo Juruna, da aldeia Papekuri. “Se não mudarmos o rumo das coisas, a Volta Grande vai ser um grande cemitério de gente e de peixe”, diz ele. 

Para mitigar os impactos sobre as piracemas,os pesquisadores sugerem a criação de um "Hidrograma Piracema", que diminui o volume de água represado por Belo Monte, de modo a garantir a reprodução das espécies de peixe que vivem no Xingu. 

 

 

Atenção internacional

Ana Laide, do Xingu Vivo, diz que a demanda das populações da região é clara. “O que o povo quer é água para a Volta Grande”, afirma. O que a preocupa, diz ela, é a falta de informação a respeito da importância de proteger esse ecossistema. “O presidente do Ibama diz que o órgão vai se esforçar para garantir água, independente de ter energia ou não para Belo Monte. Mas sabemos que os órgãos licenciadores no país não têm autonomia. Quem manda é o campo político”.  

O projeto de Belo Monte foi pensado, originalmente, durante a ditadura militar. Engavetado por anos, foi retomado no primeiro governo Lula. Na época, a usina era anunciada como uma obra necessária para gerar energia e garantir o desenvolvimento econômico do país. A promessa não se cumpriu — a usina opera abaixo de sua capacidade. As pessoas deslocadas para construção da barragem, em sua maioria, foram empurradas para as periferias de Altamira: uma cidade que, hoje, desponta entre as mais violentas do Brasil. Na avaliação de Ana Laíde, esses danos são reflexo de uma visão ultrapassada de desenvolvimento. “É preciso mudar a compreensão de que se pode utilizar o meio ambiente como mercadoria”, afirma.  

Há um novo ingrediente, diz ela, que pode reequilibrar a balança em favor das populações do Xingu. Desde o primeiro governo Lula, cresceu a preocupação internacional a respeito do destino da Amazônia brasileira. Hoje, a agenda ambiental é fundamental para a imagem do governo brasileiro no exterior. A capital do Pará, Belém, aparece como uma das cidades candidatas a sediar a Conferência das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas (COP). “E [internacionalmente] Belo Monte pega muito mal”, diz  a ativista.