Opinião


Combate ao racismo

Uma decisão do governo Bolsonaro, derrubada pelo STF, dificultou o acesso de estudantes negros e pobres ao exame. Enem precisa abandonar o discurso da meritocracia

Elitismo no Enem pode aprofundar desigualdades raciais no Brasil

Combate ao racismo

Elitismo no Enem pode aprofundar desigualdades raciais no Brasil

Uma decisão do governo Bolsonaro, derrubada pelo STF, dificultou o acesso de estudantes negros e pobres ao exame. Enem precisa abandonar o discurso da meritocracia

Escrito em 09 de Setembro 2021 por

GEORGE R B OLIVEIRA - Doutorando em Educação- UFBA

Faltando pouco mais de setenta dias para realização das versões impressa e digital do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem), a prova ainda provoca uma série de dúvidas, contradições e questões judiciais. Isso porque as desigualdades sociais e econômicas parecem invisíveis ao Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (INEP), órgão ligado ao Ministério da Educação (MEC), responsável pela organização do exame. 

Hoje, o Enem 2021 ainda caminha para ser aquele com menor número de participantes dos últimos 14 anos. A prova teve 3,1 milhões de inscritos, uma fração dos 8,7 milhões de estudantes que chegou a atrair em anos anteriores. 

 O esvaziamento é reflexo de uma decisão tomada pelo governo Bolsonaro. O processo seletivo de 2021 tentou manter uma “punição” que já existia nos anos anteriores, mas que perde o sentido no atual contexto de crise sanitária: aqueles que foram contemplados com a isenção da taxa de inscrição no ano passado, mas faltaram à prova, não teriam direito à isenção neste ano. A prova de 2020 aconteceu no auge da crise sanitária, o que pode explicar as ausências. 

Tal decisão fez parte de uma série de ações e declarações elitistas do governo Bolsonaro, referendadas por Milton Ribeiro, ministro da Educação, que em entrevista afirmou que as universidades “devem ser para poucos” e que não são úteis. Ribeiro ainda declarou, em outra entrevista, acreditar que crianças com deficiência “atrapalham” o aprendizado de outros estudantes.

Partidos da oposição e entidades ligadas à educação como a Educafro, União Brasileira dos Estudantes Secundaristas (Ubes) e União Nacional dos Estudantes (UNE) acionaram o Supremo Tribunal Federal (STF) . Na última sexta-feira (3) a Corte decidiu que o MEC deve reabrir o prazo de solicitação de isenção da taxa de inscrição para o Enem. Agora, o MEC diz estudar como fará para incluir os novos inscritos. Segundo reportagem do jornal Folha de S. Paulo, há dois caminhos desenhados: adiar a realização da prova ou colocar os novos inscritos para fazer o exame na mesma data em que as pessoas privadas de liberdade.

 A mudança é essencial porque, da maneira como estava planejado, o Enem excluía as parcelas mais pobres da população. De acordo com um levantamento feito pelo Sindicato das Mantenedoras de Ensino Superior (Semesp), a edição 2021 do ENEM tem, até aqui, a menor taxa de pessoas pretas, pardas e indígenas inscritas desde 2009. Os inscritos pretos para este ano representam apenas 11,7% do total, menor proporção desde 2009. Os pardos são 42,2% dos participantes, menor porcentagem desde 2012. 

 A tendência é de que o exame seja o mais branco e elitista dos últimos dez anos. Além disso, antes da decisão do STF,  a prova também teria a menor participação de estudantes com isenção de taxa, ou seja, aqueles cuja renda familiar é de até 1,5 salário mínimo. Agora, depois da decisão da Corte, é preciso observar os próximos passos do Inep, para avaliar se esse quadro será revertido. 

O Enem e o aprofundamento das desigualdades raciais

Realizado anualmente, o Enem faz mais do que avaliar o ensino médio. A prova é também essencial para que os estudantes tenham acesso a programas como o Sistema de Seleção Unificada (Sisu), o Programa Universidade para Todos (PROUNI) e o Fundo de Financiamento Estudantil (FIES). Os três utilizam a participação e a nota no exame como critério de seleção.

Desde que a pandemia de Covid-19 começou no Brasil, há cerca de 18 meses, houve atrasos no calendário do ensino público, as taxas de desemprego subiram, e a imunização da juventude contra o vírus seguiu lenta — é improvável que os adolescente e jovens estejam vacinados, com as duas doses, até a realização da prova, se a data original ( os dias 21 e 28 de novembro) for mantida . Todos esses fatores sociais e sanitários afetam, ainda mais, a realidade das famílias de baixa renda. O discurso meritocrático usado pelo Inep para justificar suas decisões levam ao acirramento das desigualdades sociais no país. 

 Nos últimos meses, os movimentos sociais, em especial o Movimento Negro, vêm denunciando que as desigualdades têm se agravado em diversas regiões do Brasil. No país de proporções continentais, o ensino remoto evidenciou, ainda mais, que o ensino público e o privado estão separadas por um abismo social.  E essas questões econômicas, sociais, políticas e sanitárias parecem ter aumentado o fosso das desigualdades sociorraciais que emergem com mais força na vida das famílias negras. A juventude negra é a mais afetada.

Dados da edição 2021 do Atlas da Violência, revelam  que entre 2009 e 2019, o número de negros vítimas de homicídio aumentou 1,6%, passando de 33.929 vítimas em 2009 para 34.466 em 2019. A análise nos revela que a redução dos homicídios ocorrida no país esteve muito mais concentrada entre a população não negra do que entre a negra.  

 As desigualdades que separam negros e brancos também podem ser constatadas a partir da taxa de desemprego entre as mulheres negras, que é o dobro da taxa dos homens brancos, segundo análise do data_labe, laboratório de dados localizado na Favela da Maré (RJ), que realizou cruzamentos entre as pesquisas "Pnad Contínua de 2017 a 2021" e "Pandemia na Favela - A realidade de 14 milhões de favelados no combate ao novo Coronavírus".
 
 O Enem deveria estar atento aos próprios dados que produz a partir do questionário socioeconômica aplicado no momento da inscrição. Mais ainda: deveria provocar um debate sobre as desigualdades que podem afetar estudantes que prestarão o exame a fim de mitigar os possíveis danos em suas trajetórias escolares. 

Quem sabe assim, abandonaria o discurso que flerta com a meritocracia e parece insensível às iniquidades a que grande parcela da juventude está submetida historicamente, e que tem se agravado a cada dia durante a pandemia que já ceifou a vida de mais de 580 mil pessoas no Brasil.


Geoge Oliveira (foto: 
Ismael Silva)

Foto de topo: estudantes chegam a um dos locais de aplicação do Enem 2019 (Divulgação/ Inep)
 

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