História


Combate ao racismo

Em ritmo de maratona, Associação de Mulheres Negras do Acre percorreu 10 municípios em 9 dias. Atividades ensinavam cuidados com cabelo crespo e combate ao racismo

Com oficina de beleza negra, associação trabalha autoestima e politização

Combate ao racismo

Com oficina de beleza negra, associação trabalha autoestima e politização

Em ritmo de maratona, Associação de Mulheres Negras do Acre percorreu 10 municípios em 9 dias. Atividades ensinavam cuidados com cabelo crespo e combate ao racismo

Escrito em 22 de Setembro 2021 por
Amanda Silva Alves - Associação de Mulheres Negras do Acre

Eram cinco e meia da manhã e o dia já estava claro em Rio Branco. Dava para sentir que aquele seria mais um dia muito quente. Há poucos minutos tínhamos recebido a confirmação de que o carro cedido pelo Governo do Estado do Acre realmente nos levaria até nosso destino: Senador Guiomard, a primeira de dez cidades que percorremos em uma maratona de nove dias, durante os quais, de carro, cruzamos mais de 2300 quilômetros ministrando a Oficina “Elevação da Autoestima, Estética e Beleza Negra”. A cada cidade visitada, reunimos mais e mais mulheres para falar sobre beleza negra e combate ao racismo.

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As oficinas eram parte de um projeto elaborado pela Associação de Mulheres Negras do Acre. Tínhamos dois grandes objetivos. O primeiro era estimular as mulheres negras a se organizarem para questionarem e defenderem seus direitos, de forma que a oficina funciona como uma etapa de “alfabetização” de toda a nossa formação no movimento negro. Para além disso, queríamos ampliar as atividades da Associação no estado, criando núcleos nos 22 municípios acreanos, começando pelos 10 de mais fácil acesso e mais próximos à capital, onde está localizada a sede da associação.

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Na prática, percebemos que através desta oficina as mulheres assumem sua negritude, seu cabelo crespo e, vendo outras mulheres negras, experimentam o sentimento da identificação, sentem-se bonitas de serem como são. Como a oficina mistura tópicos relacionados à beleza com conhecimento de leis e conceitos, as mulheres saem da atividade com o conhecimento básico necessário para se entenderem como negras, organizarem-se coletivamente e lutarem por seus direitos.

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A primeira parada — Senador Guiomard
Senador Guiomard, ou Quinari, como a cidade é carinhosamente apelidada pelos acreanos, é um pequeno município de 23 mil habitantes que fica a 27 km de Rio Branco. Chegando ao município, fomos diretamente para o local em que seria realizada a oficina — a sede social do Sindicato dos Trabalhadores em Educação. Por estarmos em época de pandemia de Covid-19, demos preferência a locais abertos, arejados e, ao mesmo tempo, com alguma cobertura que nos abrigasse do sol, já que em julho, as temperaturas no Acre chegavam aos 34º, com sensação térmica bem superior.
 
Havia poucas mulheres nos aguardando para participar da oficina.  Duas semanas antes, tínhamos enviado convites por e-mail e reforçado por telefone para as Secretarias de Estado, a fim de que atingissem os Conselhos Municipais de Promoção da Igualdade Racial e os representantes do Fórum Permanente de Educação Étnico-Racial, nos municípios. Como a oficina seria ministrada no sindicato da categoria, pensávamos que haveria maior adesão das profissionais da educação.
 


Enquanto íamos nos preparando para iniciar a atividade, outras tantas mulheres foram chegando, ainda timidamente. Nós as recepcionávamos calorosamente, mas era possível sentir certo receio no ar: nenhuma delas sabia bem o que esperar, o que iria acontecer ali, como funcionaria a atividade.
 
No total, 10 mulheres participaram da primeira oficina. Ou melhor, foram 11 — a pequena Thainá, uma bebê de apenas 1 aninho acompanhou sua mãe. Aliás, esta foi uma cena bastante comum durante as oficinas: mulheres que, para poder participar da atividade tinham que ir acompanhadas de suas crianças, porque não tinha  com quem deixá-las.
 
Na oficina, misturamos questões referentes à autoestima, beleza, fenótipo, pertencimento étnico com conceitos relevantes à causa negra. Entendemos que o empoderamento vem, também, do conhecimento e que se a mulher entende as leis que a protegem e seus direitos, temos uma militante disposta a ir à luta por espaço na sociedade.
 
A primeira parte da oficina é a que chamamos de teórica. É neste momento que trabalhamos o conhecimento da legislação de promoção de igualdade racial, além de conceitos de negritude, discriminação, racismo, patriarcado, machismo, misoginia, sexismo, feminismo, dentre outros temas importantes e sensíveis às mulheres negras. Também são discutidos outros temas relevantes como a organização e o exercício da cidadania, consciência negra e pertencimento étnico-racial, participação nas lutas sociais e movimentos em defesa de direitos.
 
De forma geral, nosso público é composto por mulheres simples, muitas sem acesso à educação formal e outras que nunca nem ouviram falar dessas temáticas. Assim, buscamos usar uma linguagem bem acessível e trabalhar estes assuntos de forma muito didática. Conforme a relação de confiança foi se solidificando, as mulheres foram se soltando e, em pouco tempo já se sentiam tão à vontade, que compartilhavam suas experiências pessoais relativas à discriminação, violência, racismo e outras situações que, infelizmente fazem parte do cotidiano de milhões de mulheres negras. 
 


Num segundo momento, passamos efetivamente para as questões relativas à estética, beleza negra e elevação da autoestima. Falávamos sobre empoderamento, cuidados com a pele negra, mas o foco principal são os cuidados com o cabelo crespo. Entendemos que o cabelo é, para a mulher negra, um forte mecanismo de identidade e nossa relação com nossas madeixas nos marcam desde a infância, já que até pouco tempo era muito comum ver crianças negras passando por processos de alisamentos químicos, que por vezes nos deixavam com feridas na cabeça ou até sem cabelo, e alisamentos mecânicos, como o pente quente, por exemplo, que por sua vez nos causavam doloridas queimaduras.
 
Sentimos um pouco de resistência, já que algumas não queriam que tocassem em seus cabelos, mas aos poucos, vendo como fazíamos com as outras mulheres, elas foram se soltando, se animando em participar. Demonstrávamos todos os cuidados básicos com o cabelo crespo: como desembaraçar, como usar o creme de pentear, explicávamos como fazer fitagem para valorizar os cachos, mostrávamos alguns tipos de penteados, amarrações de turbantes, formas de uso de lenços, fitas e tiaras etc.
 
Neste momento, é fantástico perceber a socialização dos saberes das mulheres negras: algumas tratam seus cabelos com tutano, outras com banana, com abacate, algumas usam a goma de tapioca, muitas usam o óleo e até o leite de coco caseiro. Essa troca de experiências foi um momento muito rico da nossa oficina, mas para elas, a grande revolução foram as técnicas de hidratação e de fitagem, que muitas não conheciam. As que já conheciam as técnicas, nos ajudavam a ensinar e a fazer nos cabelos das outras. O sentimento de aceitação foi tão forte que mulheres que tinham os cabelos alisados queriam cachear. Até tentamos cachear a alisadas, mas é muito difícil. Nestes casos, então, partíamos para as tranças, cordinhas e turbantes. O importante era que elas também desenvolvessem essa sensação de pertencimento étnico.
 
Ao final, pedíamos a todas que tinham se arrumado durante a oficina que participassem de um desfile de beleza negra ao som da música “Mama África”. Foi o ponto alto do dia. Aquelas que, a princípio, estavam tímidas, que não queriam que tocássemos em seus cabelos, faziam questão de participar do desfile, tirar fotos e gravar vídeos. Todas estavam muito mais à vontade umas com as outras, compartilhando um sentimento de companheirismo, além de já se perceberem bonitas.
 
Para nós, o mais gratificante era perceber que em apenas quatro horas de oficina conseguíamos operar a transformação mais importante, que é a interna. Sentimos que conseguimos, de alguma forma, tocar aquelas 10 mulheres, de forma que elas saíram de lá se sentindo muito mais bonitas, autoconfiantes e empoderadas.
 
Ao final do primeiro dia, nossa sensação era de puro alívio e felicidade! Tudo tinha dado certo e, apesar da baixa adesão, a oficina foi um sucesso total. A partir daí, o boca-a-boca funcionou e a história “daquelas mulheres que estavam fazendo uma oficina de beleza” começou a se espalhar rapidamente pelos demais municípios, coisa não tão difícil, em um estado com população pequena como é o caso do Acre, que tem pouco mais de 900 mil habitantes.
 
 
A valorização da mulher negra
 
A Associação de Mulheres Negras do Acre e seus Apoiadores – Negritude foi fundada em 2015 e nosso objetivo principal é valorizar a população negra, em especial as mulheres. Nascemos da iniciativa de mulheres atuantes no movimento negro e carentes de espaço para discutir as políticas públicas específicas para o segmento e nossas atividades são pautadas, principalmente, nas áreas de direitos humanos, educação, saúde da população negra e cidadania. Daí, a importância desta atividade para a nossa organização.
 
Depois daquela primeira oficina na cidade de Senador Guimard, os encontros seguintes sucederam-se como numa maratona. A cada nova cidade visitada, o número de mulheres aumentava. Passamos pelo município de Capixaba, onde a Associação de Pescadores nos recepcionou muito calorosamente. Fomos à cidade de Porto Acre, de onde, dias depois, recebemos um depoimentos muito emocionante sobre a importância que a oficina operou na vida de uma das participantes. Na cidade de Assis Brasil, a oficina ocorreu em uma escola estadual bem simples. Já no município de Epitáciolândia, por outro lado, aconteceu em um buffet de festas, alugado pela primeira dama da cidade. Realizávamos as oficinas em qualquer lugar em que fosse possível reunir as mulheres. O mais importante para nós era proporcionar a elas momentos agradáveis em que se sentissem realmente acolhidas.
 


Aliás, falando em primeira-dama, merece destaque o importante apoio que tivemos delas em alguns municípios. Elas contribuíram com muito entusiasmo para a mobilização das mulheres. Em outras cidades, por sua vez, alguns prefeitos não gostaram de nossa presença. Mas estávamos tão empolgadas com o sucesso das oficinas que nem a falta de apoio nos desmotivava.
 
A ajuda das mulheres do movimento negro, fazendo a mobilização nos CRAS (Centro de Referência em Assistência Social) e nos OPMs, (Organismos de Política para as Mulheres) foi fundamental para a divulgação das oficinas, mas o fator mais relevante, sem sombra de dúvidas foi a divulgação feita no boca a boca e que fez com que a oficina ficasse conhecida em todo o estado. Começamos a receber pedidos de grupos de mulheres que queriam que fizéssemos a oficina em seus municípios. Por ora, infelizmente, não temos apoio necessário para nos deslocarmos para os municípios mais distantes ou os de difícil acesso, já que em alguns deles, só é possível chegar de barco ou avião fretado.
 
Nas cidades por onde passávamos, as reações das mulheres eram as mais variadas. No município de Assis Brasil, por exemplo, conhecemos a dona Maria, uma cabeleireira que trabalha com diversos tipos de alisamento. Ela participou de toda a oficina. Na parte teórica foi muito participativa, fez perguntas e trouxe relatos pessoais. Quando começou a parte prática, porém, em que tratamos sobre estética e beleza negra, ela se retraiu e, em nenhum momento, deixou que tocássemos em seus cabelos. Ficou até o final da oficina, contribuiu com seus conhecimentos sobre cabelos, mas não deixou que tocássemos neles nem para fazermos tranças ou amarrar um turbante.
 
Algumas semanas depois, encontramos dona Maria em Rio Branco, no Encontro Estadual de Mulheres Negras. O curioso, é que quando ela viu como estávamos cuidando de um cabelo com a textura muito parecida com o dela, ela finalmente se animou, tomou coragem e pediu que fizéssemos o mesmo no cabelo dela.  Algumas semanas depois do Encontro Estadual, ela nos mandou mensagem pedindo algumas informações e orientações sobre o processo de fitagem porque agora ela quer trabalhar, também, com cabelos crespos naturais e mais à frente se especializar neste público.
 
O Encontro Estadual de Mulheres Negras foi realizado pouco depois do fim da nossa maratona.  Foi neste momento que ficou mais claro para nós que seguimos pelo caminho certo ao insistir na realização da força-tarefa para percorrer esses 10 municípios em tempo recorde.
 
No Encontro Estadual, ficou nítido que os conhecimentos básicos adquiridos durante a realização das oficinas foi fator decisivo para uma participação mais efetiva, significativa e de melhor qualidade para essas mulheres. Foi enriquecedor para elas, mas muito mais para nós, que nos emocionamos ao vermos que elas já se sentiam bem mais seguras e à vontade para expor seus pensamentos e anseios em relação às políticas de igualdade racial.
 
Esta oficina é um trabalho muito especial para nós e sua realização sempre foi muito questionada por algumas companheiras do movimento negro, que defendem que a questão da beleza é supérflua e que o mais importante é politizar as mulheres. Entendemos o ponto de vista delas, porém acreditamos que a melhor forma de alcançar as pessoas é começar a falar por meio de um de seus objetos de interesse.  Cremos que é muito mais efetiva essa conversa “de mulher para mulher”, papeando sobre os filhos, racismo na escola, direitos, falta de empregos, políticas públicas, citando exemplos vividos por elas, por seus familiares e demonstrando que existe toda uma política que define nossa situação na sociedade.
 
Toda essa maratona foi muito cansativa. Na verdade, foi exaustiva. Mas a sensação de dever cumprido, a emoção de ouvir os depoimentos da transformação que a participação na oficina proporcionou a elas, não tem preço. Assim que tivermos o apoio necessário, pretendemos levar as oficinas para os 12 municípios que não pudemos visitar e sonhamos em repetir a dose nas cidades pelas quais já passamos.


Fotos ao longo da matéria: divulgação / Associação de Mulheres Negras do Acre

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