1º de maio: no sistema socioeducativo, profissionalização deveria ser eixo de reintegração social
Em muitas unidades socioeducativas, as atividades de formação profissional são escassas, desconectadas das demandas do mercado e desprovidas de garantias mínimas de direitos. É urgente tratar a profissionalização como estratégia de emancipação

Coalizão pela Socioeducação
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Neste 1º de maio, Dia Mundial do Trabalho, a Coalizão pela Socioeducação chama atenção para uma realidade frequentemente negligenciada: a situação do trabalho de adolescentes e jovens em cumprimento de medidas socioeducativas. Em um contexto de violações históricas, esses adolescentes — em sua maioria negros e moradores das periferias — vivenciam a exclusão tanto da cidadania quanto do acesso ao trabalho protegido.
Enquanto o debate público gira em torno do desemprego e da informalidade, pouco se discute sobre as condições de trabalho para adolescentes e jovens privados de liberdade ou em meio aberto. Em muitas unidades socioeducativas, as atividades de formação profissional são escassas, desconectadas das demandas do mercado e desprovidas de garantias mínimas de direitos.}
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Exclusão Social, Ato Infracional e os Desafios da Profissionalização
Segundo o Sinase 2024, os atos infracionais mais comuns entre adolescentes privados ou restritos de liberdade continuam sendo o roubo (31,7%) e o tráfico de drogas (27%). Esses dados não podem ser compreendidos apenas como desvios individuais, mas sim como reflexo de estratégias de sobrevivência em contextos de vulnerabilidade extrema, marcados pela negação histórica de direitos fundamentais como educação de qualidade e trabalho digno.
Nesse cenário, a profissionalização prevista no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e na Lei do Sinase deveria ser um dos eixos centrais da reintegração social. No entanto, enfrenta inúmeros obstáculos. Dados do Levantamento Nacional do Sinase 2024 revelam que 81% dos adolescentes em cumprimento de medidas socioeducativas não participam de atividades laborais remuneradas; 37% não tiveram acesso a ações de formação profissional — sendo que em 4% dos casos sequer há informação registrada —; e 42,8% cursaram ou estão cursando apenas o Ensino Fundamental, o que restringe o acesso a ocupações mais qualificadas.
Além disso, faltam parcerias com o setor produtivo, políticas de acompanhamento após o cumprimento da medida e estratégias efetivas de combate ao estigma. Mesmo com legislações que incentivam a aprendizagem, a resistência de empregadores em contratar adolescentes egressos reforça a exclusão contínua desses jovens.
Essa ausência de políticas consistentes de qualificação e integração com o mercado de trabalho fragiliza o processo socioeducativo e reforça os ciclos de exclusão. O cenário se agrava diante da precarização do mercado de trabalho no Brasil: segundo o IBGE, a taxa de informalidade atingiu 38,9% no trimestre encerrado em outubro de 2024, afetando especialmente jovens e populações vulneráveis. A informalidade retira desses trabalhadores direitos básicos como carteira assinada, previdência, jornada regulamentada e proteção contra acidentes.
Para adolescentes em cumprimento de medidas, os obstáculos são ainda mais severos. Além da escassez de formação e oportunidades, enfrentam o estigma, a discriminação e a rejeição social. Muitos acabam sendo empurrados para atividades informais, instáveis e desprotegidas, aumentando sua vulnerabilidade econômica e o risco de reincidência.
Sem acesso a uma formação consistente e à inserção protegida no mundo do trabalho, a profissionalização perde seu potencial transformador e se torna mais uma promessa não cumprida. Em um país onde a pobreza e o racismo estrutural limitam o acesso a oportunidades, é urgente tratar a profissionalização como um direito e uma estratégia concreta de emancipação. Não se trata apenas de preparar para o mercado, mas de garantir caminhos reais para que adolescentes possam reconstruir suas trajetórias com dignidade, autonomia e proteção.
Tráfico de drogas: uma das piores formas de trabalho infantil
Embora muitas vezes invisibilizada no debate público, a participação de crianças e adolescentes na comercialização de drogas ilícitas configura, segundo a Convenção nº 182 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), uma das piores formas de trabalho infantil. Essa convenção, ratificada pelo Brasil e regulamentada internamente pelo Decreto nº 6.481/2008, reconhece que atividades ligadas ao tráfico são altamente exploratórias, perigosas e degradantes, com impactos profundos na saúde física, mental e no desenvolvimento social e moral dos adolescentes.
Apesar desse reconhecimento formal, a resposta do Estado brasileiro à presença de adolescentes no tráfico é majoritariamente punitiva e criminalizante. Em vez de serem tratados como vítimas de um ciclo de exclusão e exploração, esses jovens são alvo de ações repressivas policiais e judiciais, sendo internados por ato infracional análogo ao tráfico, muitas vezes sem que se leve em conta seu contexto de vida ou a ausência de alternativas legítimas de sustento.
Dados do Levantamento Nacional do Sinase 2024 indicam que o tráfico de drogas figura entre os dois principais motivos de internação. Essa prevalência não deve ser interpretada como uma “escolha criminosa”, mas como sintoma da falência de uma rede de proteção social capaz de garantir educação de qualidade, segurança alimentar, oportunidades de qualificação e inserção no mercado de trabalho com direitos.
Essa falência tem marcadores históricos e raciais. Como lembra Thaisi Bauer, Secretária Executiva da Coalizão pela Socioeducação, adolescentes negros e periféricos vivem sob um regime permanente de negação de direitos: “a ausência de políticas públicas que possibilitem o acesso à reparação histórica da população negra inviabiliza seu acesso à renda, à saúde, à educação integral, ao esporte e ao lazer.” A presença desses adolescentes no tráfico, portanto, é consequência direta da desigualdade estrutural.
Além disso, a inserção de adolescentes no tráfico está entrelaçada a outras formas de trabalho infantil informal. Como explica a professora e pesquisadora Mariana Chies (INSPER), muitos desses jovens já realizam atividades como panfletagem, lavagem de carros e entregas informais antes de se envolverem com a venda de drogas — geralmente atraídos pela promessa de retorno financeiro imediato e por redes de sociabilidade que, mesmo de forma precária, compensam a ausência do Estado.
No entanto, o que se apresenta como “renda” revela-se um processo de precarização extrema do trabalho, em que o risco de morte, prisão ou exploração por organizações criminosas é constante. As crianças e adolescentes inseridos/as nessas redes são submetidos a jornadas exaustivas, vigilância permanente, ameaças de violência e a uma lógica de reposição rápida em caso de repressão — sendo descartáveis tanto para o Estado quanto para o mercado ilegal que os absorve.
A contradição é evidente: o Estado brasileiro assina tratados internacionais que reconhecem o tráfico como uma forma proibida de exploração infantil, mas, ao mesmo tempo, pune severamente os adolescentes envolvidos, perpetuando a lógica da seletividade penal. Essa postura expõe não apenas o fracasso das políticas de proteção, mas também o uso estratégico do sistema socioeducativo para o controle de corpos racializados e pobres.
Reconhecer o tráfico como trabalho infantil é romper com o discurso da “criminalidade juvenil” e assumir o compromisso de garantir a esses adolescentes não o cárcere, mas proteção integral, reparação e alternativas reais de vida. Isso exige, com urgência, a revisão da forma como o Judiciário, o Ministério Público e os sistemas de segurança pública interpretam e aplicam a lei — promovendo ações articuladas de defesa de direitos e responsabilização do Estado pelas omissões que antecedem o ato infracional.
Projeto Tecendo Caminhos pela Liberdade: Justiça que Protege
Diante da criminalização crescente de adolescentes pobres e negros — especialmente os acusados por atos infracionais ligados ao tráfico de drogas — o Projeto Tecendo Caminhos pela Liberdade surge como uma resposta concreta e estratégica. O objetivo é enfrentar a seletividade penal e afirmar a proteção integral como um princípio constitucional e um compromisso internacional assumido pelo Estado brasileiro.
A proposta parte da constatação: adolescentes em conflito com a lei, particularmente aqueles envolvidos com a comercialização de substâncias ilícitas, não vêm sendo reconhecidos como vítimas de uma das piores formas de trabalho infantil, conforme previsto na Convenção 182 da OIT e no Decreto 6.481/2008. Em vez de receberem proteção, esses adolescentes têm sido privados de liberdade em contextos marcados pelo racismo institucional, por violações de garantias processuais e pela ausência de medidas efetivamente protetivas.
O projeto atua nos estados de São Paulo, Ceará e Minas Gerais, mobilizando organizações da sociedade civil, defensorias públicas, juristas, pesquisadores e ativistas. O foco é identificar e intervir em casos em que adolescentes foram internados de forma indevida por tráfico de drogas, em desacordo com o marco normativo nacional e internacional, que orienta a privação de liberdade como uma medida excepcional, breve e devidamente justificada.
A atuação se estrutura em quatro frentes principais:
- Análise minuciosa de processos judiciais, identificando falhas na fundamentação, ausência de defesa técnica qualificada e desrespeito ao princípio da proporcionalidade;
- Impetração de Habeas Corpus individuais e coletivos, solicitando a substituição da internação por medidas protetivas, conforme garantem o artigo 227 da Constituição Federal e o artigo 35 do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA);
- Coleta e sistematização de dados relevantes, como tempo médio de internação, perfil racial e socioeconômico dos adolescentes, taxas de reincidência e carência de políticas públicas nos territórios de origem;
- Mobilização de defensores públicos, operadores do Direito e organizações comunitárias, fortalecendo uma rede de apoio jurídico e político comprometida com uma justiça que repara e protege — e não apenas pune.
Mais do que corrigir injustiças individuais, o Tecendo Caminhos pela Liberdade propõe uma nova abordagem institucional, centrada na garantia de direitos e no enfrentamento das desigualdades que estruturam o sistema de justiça juvenil no Brasil. Com base nessa experiência, o projeto está sistematizando sua metodologia e preparando a publicação de um manual replicável, que permitirá expandir essa estratégia para outros estados e instituições.
O Tecendo Caminhos pela Liberdade é, portanto, um projeto de transformação estrutural. Ele desafia o encarceramento em massa, fortalece a atuação jurídica fundamentada nos direitos humanos e constrói alternativas reais para que adolescentes possam reconstruir suas trajetórias com dignidade — e não vê-las interrompidas pela repressão.
Uma Nova Agenda: Profissionalizar com Direitos e Transformar Trajetórias
A realidade do sistema socioeducativo brasileiro exige a construção de uma política pública robusta de formação profissional. Mais do que cursos pontuais, é preciso uma estratégia articulada que garanta formação de qualidade, respeite os direitos dos adolescentes e dialogue com as transformações do mundo do trabalho.
Isso inclui investimento estatal em formações alinhadas com as novas tecnologias, a economia criativa e as vocações locais. É igualmente importante valorizar tanto a educação técnica quanto o desenvolvimento de habilidades socioemocionais e empreendedoras.
Além disso, o acompanhamento dos adolescentes após o cumprimento da medida é essencial, garantindo acesso ao mercado formal com todos os direitos trabalhistas assegurados. Sem esse suporte, a reintegração se fragiliza, aumenta a vulnerabilidade e amplia o risco de reincidência.
Combater o estigma social e implementar políticas de incentivo à inclusão de adolescentes egressos em ambientes de trabalho dignos também é responsabilidade do Estado. Superar essas barreiras é condição fundamental para uma reintegração efetiva.
Em um país onde a pobreza e o racismo estrutural limitam o acesso às oportunidades, a profissionalização precisa ser compreendida como um direito e uma estratégia de emancipação. Não se trata apenas de preparar para o mercado — trata-se de garantir a construção de trajetórias seguras, autônomas e possíveis.
Neste 1º de Maio, a Coalizão pela Socioeducação reafirma:
Trabalho sim — com direitos, proteção e possibilidades reais de futuro.
Para saber mais:
Pobreza Multidimensional na Infância e Adolescência no Brasil (2017–2023) – UNICEF.
Levantamento Nacional do Sinase 2024
Taxa de Informalidade no Brasil – IBGE (Outubro de 2024)
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