Trabalho análogo à escravidão: como a cafeicultura se tornou um dos setores com maior ocorrência de casos
Pesquisa revela como trabalhadores são explorados na produção de café, enquanto empresas internacionais ignoram denúncias e seguem lucrando com cadeias produtivas e certificações ineficazes
Conectas Direitos Humanos
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Elisabete Vitor, 58 anos, começou a trabalhar nas lavouras de café aos oito anos de idade. A rotina nas fazendas, exaustiva até para adultos, era ainda mais desgastante para uma criança. Ao longo da vida, entre uma colheita e outra, ela alternou o trabalho no campo com funções como empregada doméstica. Sempre soube que a relação entre patrões e trabalhadores rurais geralmente era desigual. Mas foi apenas ao receber um panfleto de um sindicato, explicando seus direitos, que compreendeu estar em uma situação de trabalho análogo à escravidão.
“O que fizeram com nosso povo no passado ainda se repete. Mas ainda tem gente com coragem [para enfrentar essa situação]. Quanto vale a vida de uma mulher numa lavoura de café?”, questionou Elisabete, que integra a Articulação dos Empregados Rurais do Estado de Minas Gerais (Adere-MG), durante o lançamento da pesquisa Trabalho escravo no café: das fazendas às multinacionais, realizado em abril no Armazém do Campo, em São Paulo (SP).
Leia as três partes da pesquisa:
Trabalho escravo no café: das fazendas às multinacionais – Parte 1
Trabalho escravo no café: das fazendas às multinacionais – Parte 2
Trabalho escravo no café: das fazendas às multinacionais – Parte 3
A legislação brasileira utiliza o conceito “condição análoga à de escravo” ou “trabalho análogo à escravidão” para se referir a essa realidade. O artigo 149 do Código Penal define quatro situações que configuram o crime: trabalho forçado, servidão por dívida, condições degradantes e jornada exaustiva. A pena prevista é de reclusão de 2 a 8 anos, além de multa.
Mesmo com essa legislação, milhares de trabalhadoras e trabalhadores brasileiros continuam a enfrentar rotinas degradantes, alojamentos precários, jornadas exaustivas e ausência de direitos básicos. Desde 1995, mais de 65 mil pessoas foram resgatadas de condições análogas à escravidão no Brasil, segundo o Ministério do Trabalho. Em 2023, o país registrou 3.240 trabalhadores libertados — o maior número desde 2009. Já em 2024, foram registrados 2.004 resgates. A abolição formal da escravidão em 1888 não erradicou a prática: ela apenas se adaptou às engrenagens do agronegócio moderno.
A exploração no ciclo do café
Nos últimos anos, a cafeicultura — setor onde Elisabete tem experiência — tem estado entre os que mais apresentam casos de trabalho escravo contemporâneo no Brasil. Em 2024, a atividade somou 214 pessoas resgatadas, com a maioria dos casos registrados em Minas Gerais, principal estado produtor do país.
Segundo a Adere-MG, durante a colheita de café (entre maio e setembro), o sul de Minas recebe migrantes vindos do Vale do Jequitinhonha e de estados do Nordeste. O sonho dessas pessoas é garantir uma remuneração para sustentar suas famílias, mas, em muitos casos, elas se deparam com condições degradantes e ausência ou inadequação de pagamento.
“Durante a colheita, você vai às comunidades do interior da Bahia ou do Vale do Jequitinhonha e só encontra mulheres, crianças e idosos. Os homens migraram para o café. E muitos acabam escravizados”, contou Jorge Ferreira, dirigente e coordenador da Adere-MG, durante o evento de lançamento.
Jorge fala com conhecimento de causa: foi vítima de trabalho escravo aos 13, 17 e 21 anos, em fazendas, padarias e pedreiras. “Passei a vida combatendo o trabalho escravo sem perceber que tinha sido vítima. Só fui entender isso 18 anos depois, assistindo ao filme Pureza. A gente naturaliza a violência. Não se enxerga como gente.”
Como as cadeias produtivas perpetuam abusos
A pesquisa Trabalho escravo no café: das fazendas às multinacionais foi dividida em três partes e expõe como o sistema de exploração se sustenta: cadeias produtivas com irregularidades, terceirizações ilegais, certificações ineficazes e um Estado que, muitas vezes, não consegue fiscalizar com eficiência. O estudo é fruto de uma parceria entre a Conectas Direitos Humanos e o projeto global Mind the Gap, liderado pela organização holandesa SOMO.
Para Jorge, a construção de políticas públicas deve ser feita com as vítimas. “Nós, da Adere, queremos construir políticas públicas com as vítimas, não para elas. Sem isso, só vamos continuar falando sobre escravidão com os cabelos brancos.” Ele também chama a atenção para o papel das organizações não governamentais e da sociedade civil, alertando que o compromisso contra o trabalho escravo precisa ser efetivamente aprofundado.
Brechas legais e blindagem corporativa
A primeira parte da pesquisa mostra como as multinacionais se aproveitam de lacunas na legislação brasileira e da ausência de mecanismos eficazes de rastreabilidade para se desvincular das violações. O problema não está restrito às fazendas: as grandes corporações exportadoras operam com uma lógica de lucro que ignora os direitos humanos.
Apesar dos avanços no combate ao trabalho escravo nas últimas décadas, o Brasil enfrenta sérios desafios para garantir transparência nas cadeias produtivas e assegurar a devida diligência empresarial, áreas em que a legislação ainda é insuficiente.
O papel controverso das certificadoras
Nesse cenário, as certificadoras exercem um papel controverso. Em vez de assegurar o respeito aos direitos humanos, muitas complexificam as cadeias produtivas e oferecem uma falsa sensação de conformidade. Selos de certificação — emitidos sem verificação rigorosa e independente — acabam funcionando como blindagem jurídica e reputacional para grandes empresas.
Essa fragilidade da autorregulação, evidenciada por falhas em auditorias externas e em esquemas de certificação, não só fornece garantias ilusórias de conformidade, como também dificulta investigações e intervenções necessárias. Assim, as multinacionais se amparam nesses certificados para terceirizar responsabilidades e ocultar violações, dificultando o acesso das vítimas a mecanismos de reparação.
Estratégias corporativas de blindagem
A segunda parte do estudo analisa as estratégias corporativas para criar e manter brechas de governança que impedem a responsabilização empresarial. A análise é baseada em uma denúncia apresentada ao Ponto de Contato Nacional (PCN) da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) no Brasil contra seis grandes empresas globais de café.
O relatório traz ainda recomendações para que os setores público e privado aprimorem os mecanismos de governança em direitos humanos no Brasil, evitando novos episódios de violações.
A fiscalização que falha
Por fim, a terceira parte do relatório se debruça especificamente sobre a cadeia global de valor do café. O objetivo é compreender a inserção do Brasil no cenário internacional, o perfil das vítimas e empregadores e as conexões entre multinacionais e casos de trabalho escravo e outras violações de direitos em fazendas cafeicultoras.
O texto apresenta os principais elos da cadeia produtiva dentro e fora do Brasil, seguido de um panorama das violações associadas ao setor cafeeiro nos últimos anos – particularmente aquelas relacionadas a condições de alojamento e trabalho. Na sequência, o material evidencia os vínculos entre o trabalho escravo e a cadeia global de valor do café. O relatório destaca as denúncias da Conectas e da Adere-MG contra grandes empresas do setor, visando proteger os trabalhadores da base da cadeia produtiva, promover boas práticas e garantir reparação às vítimas de trabalho escravo.
“O uso de mão de obra escrava na cafeicultura, principalmente de pessoas negras, remonta à formação econômica e social do Brasil. O café foi um dos principais produtos da economia brasileira no período colonial e motivou o tráfico de milhões de africanos escravizados para o país no século XIX”, destaca o texto.
Denúncias no Ponto de Contato Nacional (PCN)
Em 2018, a Conectas e a Adere-MG denunciaram ao PCN do Brasil casos de trabalho escravo em fazendas de café no Sul de Minas Gerais — região fornecedora de multinacionais como Nestlé, Jacobs Douwe Egberts (JDE), McDonald’s, Dunkin’ Donuts, Starbucks e Illy.
O PCN, mecanismo da OCDE responsável por promover as Diretrizes para Empresas Multinacionais, aceitou parte das denúncias, mas carece de instrumentos de monitoramento efetivo.
Apenas Nestlé e Dunkin’ Donuts se dispuseram a tratar do tema. McDonald’s e JDE recusaram negociações, enquanto os casos envolvendo Starbucks e Illy foram arquivados sem possibilidade de recurso.
A Nestlé, por sua vez, anunciou medidas como auditorias externas, consultas a representantes dos trabalhadores e a criação de fóruns regionais para conscientização. Também se comprometeu a divulgar o canal de denúncias do Governo Federal, o Sistema Ypê.
A esperança na luta coletiva
Para Elisabete, Jorge e tantos outros trabalhadores, a esperança para quebrar o ciclo de exploração está na denúncia, na organização e na pressão coletiva. Como resume Jorge: “80% das vítimas de trabalho escravo no campo são pessoas negras. Somos os herdeiros da desgraça do navio negreiro. Mas ela não vai continuar sozinha.”
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