Aborto: por que o Estado não protege as vidas de mulheres e meninas brasileiras?
Maria Teresa Ferreira
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Quando o Estado se isenta da responsabilidade de proteger, defender e conservar a vida e a integridade de meninas e mulheres, ele autoriza a barbárie com que os corpos e as diversas experiências de femininos vem sendo tratadas. É isso o que o Estado brasileiro pretende fazer, a julgar pela recém-publicada cartilha do ministério da Saúde com instruções incorretas sobre o aborto. Na cartilha, intitulada “Atenção técnica para prevenção, avaliação e conduta nos casos de abortamento”, o ministério afirma que não existe aborto legal no país. Mais à frente, sugere que os abortos realizados em instituições brasileiras devem ser investigados, de modo a determinar se devem ou não ser punidos.
A cartilha do ministério da Saúde foi discutida durante audiência pública em Brasília na tarde desta terça-feira (28). A perversidade com que sugere sujeitar mulheres e meninas ao escrutínio dá pistas de que, no Brasil, a sociedade foi estruturada de modo a expor mulheres ao sofrimento.
As últimas semanas foram dolorosas para as mulheres brasileiras. Além do manual do governo, ao menos dois casos de mulheres vítimas de abuso (de múltiplos abusos) ocuparam a opinião pública e pautaram os meios de comunicação. Não vou remorá-los aqui: a dor dessas mulheres e meninas já foi exposta demais. A maneira como foram tratadas é reflexo da ausência do Estado, que se eximiu de sua responsabilidade de resguardar a vida e o bem-estar das mulheres e meninas. Essa é uma obrigação expressa na Constituição Federal, que ressalta o direto à saúde, ao trabalho, a segurança, proteção a maternidade e à infância e assistência social.
O patriarcado, a hetronormatividade compulsória, cisgeneridade e a religião são formas sociais de enxergar o mundo que acabaram por estabelecer um padrão, que na realidade se reproduz em quase a totalidade das relações, que ignora as individualidades, os desejos, e que aprisiona as mulheres num ciclo de violência que busca controlar os corpos femininos. Existe uma pressão externa sobre nossos corpos que provoca um descompasso entre o que se passa dentro da intimidade, os questionamentos sobre nossas experiências, vivências, aprendizados e prazer – e quem podemos ser, de acordo com essa sociedade que cerceia nossas liberdades.
Nas últimas semanas, duas mulheres – meninas! – se tornaram vítimas célebres desses mecanismos de controle. Mas há milhares de casos que passam desconhecidos, de mulheres sem nome que passam pelas mesmas arbitrariedades perpetradas pelo judiciário, pelos órgãos da segurança pública e por parte da imprensa. Enquanto isso, o direito ao aborto é tratado com um tabu. Um assunto a ser silenciado. O silêncio permite a impunidade. A impunidade autoriza a violência. A violência oprime, mata e, consequentemente interrompe o fluxo das possibilidades para as mulheridades presentes na sociedade.
Há um abismo de silenciamentos quando tratamos das questões sobre reprodução, aborto, adoção e maternidade. Quando essas discussões são unilaterais, ou seja, quando elas tiram a responsabilidade dos homens e, via de regra, culpabilizam as mulheres. Esse comportamento não só reforça a ação de um Estado conservador e patriarcal, como também faz a manutenção da tutela sobre nossos corpos. É urgente discutir o Estado brasileiro, suas instituições e as interfaces dele na vida e principalmente na garantia de segurança e direito para meninas e mulheres.
O simples fato de sermos mulheres e a perspectiva de nos tornar mulher, como disse Simone de Beauvoir, não pode dar cabo das nossas possibilidades e existência.
Construir uma cultura de não-violência para meninas e mulheres exige dar garantia de segurança e vida plena para esses corpos. Isso é obrigação do Estado, garantido pela na constituição. As perspectivas de ampliação das potencialidades das mulheridades para além da garantia das nossas vidas é a garantia de uma sociedade livre e segura para todas, todos e todes.
Foto de topo: Mídia Ninja
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