Aos 30 anos, ECA reflete evolução do olhar sobre a infância
Estatuto da Criança e do Adolescente, que completou três décadas em julho, contribuiu para avanços — como o combate à desnutrição infantil. Tem, diante de si, desafios importantes
Pedro Ferreira
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A infância é uma etapa rica no ciclo da vida. Em todas as culturas, encontramos traços e peculiaridades que marcam o rito de passagem da infância à adolescência e, então, à fase adulta. Embora as transformações de ordem psicológicas e biológicas desse período sejam permeadas de turbulências e crises, nossas relações sociais são determinadas neste momento da vida por particularidades e valores.
A infância como período distinto, especialmente voltado para a aprendizagem escolar para atividades lúdicas, surge a partir do século XIV. De início, era restrita à realidade das nobrezas europeias. “Na história da sociedade ocidental, as crianças camponesas não conheciam muitos brinquedos e isto não queria dizer que, em condições pré-capitalistas, tinham uma infância “estúpida” ou triste’’.
A ampliação da noção de infância para um maior número de crianças acontece com a ascensão da burguesia, principalmente durante o século XIX (19). Ao mesmo tempo, ficava reservada à população urbana pobre uma infância explorada e miserável, retratada pelo escritor inglês Charles Dickens em livros como Oliver Twist.
Já o termo adolescente e seu significado, tal como conhecemos hoje, é mais recente. A ideia de adolescência, entendida como transição – rito de passagem – para vida adulta surge na primeira metade do século passado com estudos antropológicos de Margaret Mead (1901-1978) e de Edward Evans-pritchard (1902-1973), que indicam a adolescência universal, válida para todas as sociedades ocidentais desde os primórdios.
Nesta perspectiva entendemos a transformação do corpo infantil em adulto marcada por particularidades e valores próprios de cada sociedade, e também que, para atuarmos junto a esse grupo, precisamos compreender as crianças e adolescentes em seu tempo presente, em suas formas de ser e atuar no mundo contemporâneo, reconhece-los como atores sociais, protagonistas de suas próprias realizações, agentes ativos e participantes.
Por séculos, as sociedades ocidentais conviveram com a normalização do trabalho infantil. Prática abusiva, ele transforma adolescentes em vítimas de abandono, abusos, explorações. Provoca evasão escolar, maternidade precoce e suprime o direito às vivências, interações sociais e, sobretudo ao crescimento sociocultural.
No Brasil, o trabalho infantil chega com as caravelas portuguesas. Nessas embarcações, crianças entre 9 e 16 anos eram submetidas a tarefas perigosas. Eram chamadas de grumetes, marinheiros que iniciavam a carreira na armada. Eram obrigadas, pelos pais, a trocar a infância por trabalho. Estima-se que 10% da frota de Cabral era formada por Crianças: “[…] Trabalham como gente grande, ou melhor, como escravos. Limpam o convés, fazem faxina nos porões e remendam velas. (SENTO-SÉ, 2000, p. 62).”
No período da escravidão, crianças negras e indígenas trabalhavam nas lavouras e na exploração de minas de ouro. A igreja se opunha à escravidão dos indígenas, mas era conivente com a escravidão dos negros. Filhos de escravos e mulheres eram vendidos em leilões públicos por preços menores, eram considerados coisas e sujeitadas ao trabalho forçado. Desde os quatro anos de idade, já faziam pequenos serviços ao redor da casa grande. Ao quatorze anos, tanto meninas quanto meninos já trabalhavam como adultos.
Do ponto de vista legal, foi lenta a evolução até a proibição do trabalho infantil no Brasil. Ela começa ainda em finais do século XIX. Em 1891 o trabalho de crianças foi regulamentado, não sendo permitido o trabalho de menores de 12 anos, exceto os aprendizes. Antes dessa regulamentação, crianças de oito anos já trabalhavam nas tecelagens. Autoridades, empresários e comerciantes ligados à burguesia se opunham a ampliar a proteção das crianças no trabalho, usando como subterfúgio o direito ao pátrio poder.
Até que em 12 de outubro de 1927 surgiu o primeiro Código de Menores no Brasil. O texto propunha a proibição ao trabalho de crianças até doze anos, e o trabalho noturno aos menores de dezoito anos, além de vedar, para menores de 14, o exercício de trabalho em praças públicas. O código enfrentou resistências: um habeas corpus impediu que entrasse em vigor por dois anos, alegando que atentava contra os direitos dos pais decidirem o que era melhor para os filhos.
O sucessor da lei de 1927 foi o Código de Menores de 1979. Ele não trouxe inovação alguma. Segundo Aldaíza Sposati (1998, p. 81), manteve a mesma concepção do código revogado, “dedicando-se exclusivamente ao menor em situação irregular, ou seja, àquele que não possuía o essencial para sua subsistência, dada a falta de condições econômicas do responsável”.
Com a promulgação da Constituição de 1988, o país respira um ar progressista. Nesse bojo, foi editada a Lei 8.069/90, que ficou conhecida como Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). O Estatuto reconhece a realidade das crianças e adolescentes, avança em princípios e valores sobre a dignidade humana — dentre eles, o de proteção integral às crianças e adolescentes.
Há trinta anos, líderes globais reunidos na Convenção sobre os Direitos das crianças, firmaram compromisso com as crianças do planeta. O Estatuto da Criança e do Adolescente nasce desta convenção, ratificada pelo Brasil em 24 de setembro de 1990. Nesses últimos trinta anos houve avanços e conquistas. Reduzimos em mais de 50% as mortes de crianças menores de 5 anos, e caiu quase pela metade o número de crianças subnutridas. Mas ainda há muito pela frente: no mundo, segundo dados da Unesco, há cerca de 262 milhões de crianças e adolescentes fora da escola. Poucas crianças conseguem desfrutar de uma infância saudável, e vidas continuam sendo exterminadas.
O ECA atravessa o tempo e, aos trinta anos de existência, é posto à prova. Crianças e adolescentes, sobretudo pobres e negros, são negligenciados pelo Estado e expostos ao extermínio. Mais que nunca, frente à ameaça de retrocessos institucionais, é necessária mobilização. Para garantir que crianças e adolescentes sejam protegidas. E para evitar que conquistas, alcançadas a duras penas, se percam.
1 SENTO-SÉ, Jairo Lins de Albuquerque. Trabalho Escravo no Brasil. São Paulo: LTr, 2001.
2. SPOSATI, Aldaíza. Revista teoria e debate, n. 37 – Educação. Fundação Perseu Abramo, fev.- abr. 1998.
https://www.unicef.org/brazil/convencao-direitos-da-crianca-30-anos
Antonio Carlos Pedro Ferreira, designer, gestor cultural, secretário-geral do Instituto Iddeia Cultura e Pesquisa.
Foto de topo: Tânia Meinerz / A Fronteira
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