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Caravana percorre rota da soja até a COP30 para alertar sobre danos do agronegócio

Indígenas, quilombolas, agricultores, pescadores, extrativistas e outras comunidades tradicionais defendem outras saídas para a crise climática, baseadas nos territórios. Caravana saiu do Mato Grosso e seguiu até Belém, em uma viagem de sete dias.

Tapajós de Fato

11 min

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por Lanna  Paula Ramos, do Tapajós de Fato

Nas últimas décadas, o Norte do Brasil vem se firmando como uma nova rota de exportação dos grãos produzidos no Centro-Oeste. A chamada “saída pelo Norte” integra o Arco Norte, um corredor logístico que reúne obras e projetos do governo e da iniciativa privada para baratear e facilitar o escoamento da produção pelos portos da região. Entre as principais estruturas previstas estão hidrovias e terminais portuários nos rios Tapajós, Tocantins e Madeira, além da Ferrogrão (EF-170), ferrovia de 933 quilômetros que deve ligar Sinop (MT) a Miritituba (PA).

Todo esse complexo de infraestrutura do agronegócio é o centro das denúncias feitas por cerca de 300 pessoas que se reuniram na Caravana da Resposta, mobilização que percorreu o caminho da soja. O grupo saiu do Mato Grosso de ônibus no dia 04 de novembro, foi até Santarém, no Pará, e seguiu de balsa pelo Rio Amazonas até Belém. O grupo chegou à capital paraense na última terça-feira (11) para participar da Conferência das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas (COP30) e das mobilizações sociais da Cúpula dos Povos e da COP do Povo.

“A gente está aqui para denunciar o agronegócio, que tem plantado soja e impactado territórios de indígenas, agricultores e quilombolas. Que tem contaminado nossos rios e a nossa comida com os agrotóxicos. Que tem piorado a crise climática, mas a gente também veio nessa rota mostrar que os povos têm a alternativa, que vocês têm desenvolvido práticas positivas nos territórios que são a verdadeira resposta a esse modelo predatório e a solução para as mudanças climáticas”, afirmou Pedro Charbel, integrante da Aliança Chega de Soja, uma articulação formada por mais de 40 entidades da Amazônia e do Cerrado. 

A Caravana é formada por indígenas das etnias Kayapó, Panará, Arapiun, Borari, Kumaruara, Munduruku, Apiaká, entre outras, além de quilombolas, ribeirinhos, agricultores familiares, pescadores, extrativistas, ativistas, movimentos sociais e organizações.

Parte da delegação do povo Munduruku que chegou a Belém de balsa participou, nesta sexta-feira (14), dos protestos em frente à Zona Azul. Assim como as reivindicações da Caravana de Resposta, a manifestação é contra projetos de infraestrutura que impactam diretamente os direitos dos povos indígenas do rio Tapajós, como a hidrovia do Tapajós e a Ferrogrão.

O grupo foi recebido pelo embaixador André Corrêa do Lago, presidente da COP30, acompanhado das ministras Marina Silva, do Meio Ambiente e Mudança do Clima, e Sonia Guajajara, dos Povos Indígenas.

Barqueata denuncia falsas soluções diante da crise climática

A chegada em Belém foi marcada pela participação na barqueata de abertura da Cúpula dos Povos na quarta-feira (12). A balsa da Caravana da Resposta se juntou às mais de 200 embarcações que navegaram no rio Guamá para denunciar as falsas soluções do mercado diante do aquecimento global e cobrar justiça climática.

Barqueta marcou o ato de abertura da Cúpula dos Povos com mais de 200 embarcações no rio Guamá. Foto: Lanna Paula Ramos/Tapajós de Fato

Barqueta marcou o ato de abertura da Cúpula dos Povos com mais de 200 embarcações no rio Guamá. Foto: Lanna Paula Ramos/Tapajós de Fato

Entre as lideranças presentes no barco estava o Cacique Raoni Metuktire, reconhecido mundialmente pela defesa do povo Kayapó e do meio ambiente. “Vocês estão vendo agora muitos rios secando e isso é por causa do desmatamento. Se continuarmos nesse ritmo, esse rio que nós estamos pode secar. O governo quer perfurar petróleo na Amazônia, essas hidrovias para o escoamento de produtos pelas nossas terras. Se continuar fazendo essas coisas ruins, primeiro os povos indígenas irão sofrer, depois todos vocês”, alertou Raoni. 

Sobre a exploração na Foz do Rio Amazonas e a construção da Ferrogrão, o cacique afirmou que segue cobrando diretamente o presidente Lula. “Eu já falei com o presidente sobre esses assuntos. Já falei para não perfurar petróleo, não autorizar a Ferrogrão. Também falei com Macron. Vou continuar cobrando”.

Infraestrutura sem ouvir os povos

As denúncias de Raoni ecoam as vozes e reivindicações construídas ao longo da Caravana. Durante a viagem, os participantes se reuniram em plenárias, assembleias e rodas de conversa para compartilhar experiências e traçar estratégias de resistência. 

"Se continuar fazendo essas coisas ruins, primeiro os povos indígenas irão sofrer, depois todos vocês" - Cacique Raoni Metuktire, reconhecido mundialmente pela defesa do meio ambiente.

“Se continuar fazendo essas coisas ruins, primeiro os povos indígenas irão sofrer, depois todos vocês” – Cacique Raoni Metuktire, reconhecido mundialmente pela defesa do meio ambiente.

Uma das vozes presentes foi a de Francisca Barroso, agricultora familiar do município do Trairão, no Pará. Ela chegou ao estado ainda criança, vinda do Maranhão com a família, em busca de um pedaço de terra para plantar e morar. Hoje, enfrenta os impactos da expansão da soja na região e dos projetos voltados para o escoamento da produção, como a BR-163. 

“A BR-163 não é uma BR para nós. É uma BR para o agronegócio, para o sojeiro, onde nós não temos direito nem de atravessar dentro da nossa cidade porque não tem sinalização. A gente passa um monte de horas para atravessar porque a estrada ficou alta, a cidade ficou lá embaixo. Então, a gente só tem acesso por um canto. Os carreteiros tomam a estrada por um lado e pelo outro fica difícil de você ver, é muito acidente”, conta Francisca.

O Trairão é um dos municípios paraenses às margens da BR-163, principal rodovia de transporte da produção de grãos para os portos do Norte. É também paralelo ao traçado previsto da Ferrogrão.

“Parece que não existe ninguém ali. A Ferrogrão vai passar em cima de cemitérios de nossas comunidades, em cima das igrejas, e ninguém foi consultado”, conta Francisca Barroso, agricultora familiar.

Instituída em 2018 pela Portaria nº 235, a Política Nacional de Transporte (PNT) estabelece os princípios e objetivos que orientam o planejamento e o desenvolvimento das obras de mobilidade no país. Apesar disso, para o economista João Andrade, do Grupo de Trabalho Infraestrutura e Justiça Socioambiental, a infraestrutura no Brasil ainda é pensada “de cima para baixo”, sem considerar a realidade dos territórios.

“A gente entende que a infraestrutura para a Amazônia é para os povos e populações tradicionais, comunidades ribeirinhas. É a infraestrutura, por exemplo, de transporte de passageiros, de transporte da produção dos povos com portos que escoam a produção extrativista para fortalecimento da agricultura familiar, para as cadeiras de agroecologia”, defende o economista. 

‘Agroecologia é vida’

A agricultura familiar, a agroecologia, o extrativismo e a pesca artesanal foram apresentadas na Caravana como alternativas reais ao modelo de agronegócio e a crise climática. Toda a alimentação distribuída durante a viagem foi fornecida por agricultores e agricultoras familiares e agroecológicos do Pará que participaram da Caravana. 

A alimentação durante toda a Caravana foi fornecida por agricultores e agricultoras familiares do Pará e Mato Grosso. Foto: Lanna Paula Ramos/Tapajós de Fato

Francisca Barroso foi uma das fornecedoras. Ela é coordenadora da Rede Agroecológica do Trairão, que produz alimentos sem a utilização de agrotóxicos para vendas em feiras do município. Segundo a agricultora, foram mais de 100 quilos de alimentos embarcados na balsa da Caravana da Resposta. “A gente continua plantando sem veneno, incentivando as famílias agricultoras e construindo nossa rede. A agricultura familiar e a agroecologia são tudo. A agroecologia é vida. É você defender a vida”, afirma.

Mas ela reconhece que a luta é árdua. No Trairão, as plantações de soja se aproximam dos roçados, e o uso de drones para pulverização aérea de agrotóxicos ameaça as lavouras e a saúde das famílias.

Esses impactos estão diretamente ligados à expansão do Arco Norte. Segundo o Anuário Agrologístico da Companhia Nacional de Abastecimento (Conab), divulgado em junho de 2025, as exportações de milho e soja pelo Arco Norte cresceram mais de 50% entre 2020 e 2024, saltando de 36,7 para 57,6 milhões de toneladas.

Formação e memória como instrumentos de luta

Entre as experiências compartilhadas na Caravana está a Escola de Militância Socioambiental Amazônida, uma iniciativa do Movimento Tapajós Vivo, de Santarém, no Pará.

“A Escola de Militância vem para construir conhecimentos e partilhar saberes, entendendo a dinâmica local do conhecimento que é construído a partir dos territórios, mas também dialogando com o que é produzido na academia. Traz uma linguagem mais popular desse saber científico para as pessoas e organizações que fazem parte desse enfrentamento direto das questões que têm impactado os territórios”, explica Alice Soares, arqueóloga que atua no Movimento Tapajós Vivo. 

Criada em 2022 por meio do Programa Vozes pela Ação Climática (VAC) – financiado pelo Ministério das Relações Exteriores da Holanda – a Escola já formou mais de 150 jovens de diferentes territórios da Bacia do Tapajós, como a Reserva Extrativista (Resex) Tapajós-Arapiuns e a Floresta Nacional (Flona) do Tapajós.

Alice Soares, arqueóloga e militante do Movimento Tapajós Vivo (PA). Foto: Lanna Paula Ramos/Tapajós de Fato

Alice Soares, arqueóloga e militante do Movimento Tapajós Vivo (PA). Foto: Lanna Paula Ramos/Tapajós de Fato

Alice conta que a Escola foi idealizada a partir da percepção de que é necessário formar novas lideranças e militantes, jovens, diante do contexto de crise climática. “Esses novos militantes não são para o Movimento Tapajós Vivo, são para os territórios, para as organizações e bases que já estão nesse enfrentamento nos territórios”, ressalta.  

Para a arqueóloga, a formação das juventudes é fundamental para o fortalecimento da luta contra as mudanças climáticas e também contra os grandes empreendimentos que intensificam os efeitos das crises. 

“A formação de juventudes é um elemento essencial para o enfrentamento da crise climática pensando que eles estão no território, estão no dia a dia vivendo os impactos das mudanças climáticas. Quando a gente está vivenciando processos como a crise climática o que a gente tem é as pessoas saindo do território, especialmente a juventude que sai pra estudar, vão para cidade e geralmente elas vão ocupar as periferias da cidade. Então, a Escola vai trabalhar essa consciência crítica para as pessoas compreenderem seu espaço, seu contexto, para mobilizar ações em defesa desse território”, declara Alice. 

Outra iniciativa apresentada na Caravana da Resposta, o Coletivo Beture é formado por comunicadores indígenas do Povo Mebêngôkre/Kayapó. Eles desenvolvem materiais audiovisuais que registram as vivências e a cultura dentro do território do povo Kayapó, como explica o jovem líder indígena Bepmoroi Metuktire, da aldeia Piaraçu na Terra Indígena (TI) Capoto/Jarina, no Mato Grosso. 

“O coletivo é um espaço para nós fortalecermos a nossa cultura, mostrando as danças, os cantos e principalmente a nossa língua materna. Então, a gente está trabalhando isso no audiovisual que também é uma forma da gente lutar através da comunicação e das redes sociais. A gente faz essa luta em defesa do nosso território, dos nossos rios, para mostrar ao mundo que a nossa cultura ainda está viva”.

Comunicador e jovem líder indígena, Bepmoroi tem atuado para manutenção da memória do povo Kayapó. Foto: Lanna Paula Ramos/Tapajós de Fato

Ele conta que os registros também são parte da manutenção da memória do povo Kayapó para que as futuras gerações também se engajem na defesa do território, que tem sofrido com o desmatamento e o avanço da soja. 

“A gente vem falando [dos impactos das mudanças climáticas] através das mídias, porque nós precisamos ser ouvidos, principalmente a juventude tem que ser ouvida. Então, a resposta que estamos levando é o engajamento de jovens para construção e manutenção da luta por meio do audiovisual”, afirma o jovem.

Comunicador e jovem líder indígena, Bepmoroi tem atuado para manutenção da memória do povo Kayapó. Foto: Lanna Paula Ramos/Tapajós de Fato

Comunicador e jovem líder indígena, Bepmoroi tem atuado para manutenção da memória do povo Kayapó. Foto: Lanna Paula Ramos/Tapajós de Fato

A Caravana da Resposta mostrou que, diante de um modelo que avança sem ouvir os povos, é nas margens dos rios e nos territórios tradicionais que nascem as verdadeiras soluções para o clima e para a vida.

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