Como um aplicativo de celular ajuda povos tradicionais a reivindicar seus territórios
Tô no Mapa! permite que comunidades tracem os limites de suas terras em mapa digital. Brasil de Direitos vai republicar histórias de comunidades mapeadas

Rafael Ciscati
7 min

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Já era perto do final de 2024 quando a pesquisadora Isabel de Castro, do Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (IPAM), recebeu uma mensagem de whatsapp. Quem a procurava era uma das lideranças da comunidade de pescadores de Barra do Mamanguape, na Paraíba.
Surgida há mais de um século, ela reúne famílias cujas principais ocupações econômicas são a pesca artesanal e o turismo de base comunitária. Por causa de suas particularidades culturais, os pescadores de Barra do Mamanguape formam uma “comunidade tradicional”. Uma classificação guarda-chuva que agrupa, pelo menos, 28 segmentos — de povos indígenas e quilombolas a apanhadores de sempre-vivas— cujos modos de vida são únicos. Nessas comunidades, a terra e os demais recursos naturais são tratados como bens coletivos, essenciais para a manutenção de suas culturas.
Em 2007, por meio de um decreto, o Brasil se comprometeu a proteger e promover os direitos culturais e territoriais dessas populações. Entre o que diz a legislação e o que vigora na vida prática, no entanto, há um abismo. Dos 28 segmentos de comunidades tradicionais oficialmente reconhecidos pelo Estado brasileiro, somente dois — povos indígenas e quilombolas — contam com procedimentos de demarcação territorial bem descritos. E, mesmo nesses casos, o reconhecimento dos territórios é lento e falho.
Foi por causa disso que, naquele fim de ano, os pescadores de Barra do Mamanguape procuraram Isabel. Ela é uma das coordenadoras de um aplicativo chamado “Tô no mapa!”. Fruto de uma parceria entre o IPAM- Amazônia, o Instituto Sociedade, População e Natureza (ISPN), a Rede Cerrado e o Instituto Cerrados, ele permite que comunidades tradicionais mapeiem as terras que ocupam. Munida de um celular com GPS, a pessoa percorre os limites do território de modo a desenhar um polígono num mapa digital.
Os registros do Tô no mapa não são oficialmente reconhecidos por nenhum governo. Não valem como uma das etapas do processo de regularização fundiária. Mas são eficientes ao mostrar que as comunidades existem.
Foi o que os pescadores de Barra do Mamanguape descobriram. Com a ajuda de Isabel, a comunidade usou o Tô no Mapa para indicar os limites do próprio território. Já há anos, eles estão às voltas com o crescimento desordenado do turismo na região. Há casos de invasões e de empresas que tentam construir resorts nas mesmas praias onde a comunidade pesca.
O caso chegou ao conhecimento do Ministério Público Federal da Paraíba que reconheceu como legítima a autodeclaração territorial feita pelos pescadores ao se registrar no aplicativo.
Sabendo que há, ali, uma comunidade tradicional, o MP emitiu duas recomendações: a primeira, orienta órgãos ambientais a não autorizar desmatamento na área da comunidade sem antes consultar o MP; a segunda pede que a prefeitura e os cartórios da região não registrem contratos de compra e venda de terrenos que incidam sobre o território.
O registro no To no mapa ! Permitiu aos pescadores de Barra do Mamanguape mostrar para um órgão público que eles existem e onde estão. É justo essa a ambição do projeto, diz Isabel. “O aplicativo é um primeiro passo numa longa luta pelo direito ao território”.
De certo modo, trata-se também de uma luta por visibilidade. Apesar de ter assumido o dever de proteger os povos e comunidades tradicionais, o Estado brasileiro costuma ignorar sua existência. O primeiro embrião do Tô no Mapa! surgiu em 2016 como reação a uma dessas tentativas de invisibilização. Um estudo lançado à época, lembra Isabel, apontava determinada parte do Cerrado como ideal para a expansão da fronteira agropecuária. “O trabalho descrevia a região como um vazio demográfico”, diz a pesquisadora.
Ela e os colegas sabiam que isso não era verdade. As equipes do IPAM e do ISPN, então, conduziram um levantamento que identificou 2398 comunidades tradicionais na mesma região onde o trabalho anterior apontara um vazio populacional.
O aplicativo surgiu como uma continuidade desse primeiro esforço de pesquisa, mas tem um escopo mais amplo. Em lugar de focar no Cerrado, o Tô no Mapa permite o registro de comunidades do Brasil todo, de todos os biomas. As equipes do projeto percorrem o país dando oficinas que ensinam a usar a aplicação. Mas também há casos, embora raros, em que a comunidade descobre o aplicativo por conta própria, e se registra espontaneamente.
O cadastro do aplicativo é feito em nome de uma pessoa física, que precisa cadastrar o próprio CPF e enviar uma ata em que a comunidade afirma que, em conjunto, decidiu fazer o automapeamento. Os cadastros enviados passam por etapas de validação conduzidas pelos institutos que capitaneiam o projeto. A última delas é a avaliação por um conselho formado por representantes de outras comunidades tradicionais.
Quem se registra no Tô no Mapa! têm também a opção de enviar seus dados para a Plataforma de Territórios Tradicionais. A iniciativa foi criada pelo Conselho Nacional dos Povos e Comunidades Tradicionais em parceria com o Ministério Público Federal e tem objetivo semelhante ao do aplicativo.
Além de mapear as comunidades, o projeto conta suas histórias em reportagens. A partir de maio deste ano, Brasil de Direitos passa a republicar algumas delas, como parceira de divulgação da iniciativa.
Na avaliação de Isabel, o Brasil tem uma imensa dívida com essas populações. “Além de não assegurar seus direitos territoriais, nem ao menos sabemos quantas elas são”, explica.
Mesmo o número de 28 segmentos, listados pelo decreto de 2007, carrega certo grau de arbitrariedade, diz o geógrafo André Moraes. Ele coordena o Tô no Mapa! pelo ISPN. “Esse número é um reducionismo. Pode haver outros segmentos não identificados pelo decreto”, afirma. “Além disso há aquelas comunidades que sentem se encaixar em mais de um segmento. E aquelas que, por não constar no texto do decreto, se apresentam como agricultores familiares”. No app, ao apontar a qual segmento pertence, a comunidade pode marcar mais de uma opção.
Essa negligência do Estado tem dois efeitos mais óbvios. De saída, ao não ser reconhecida como um dos segmentos tradicionais, uma comunidade deixa de ter acesso a políticas públicas adequadas a suas especificidades.
A outra consequência é a de que, sem o devido reconhecimento, os territórios tradicionais ficam vulneráveis a invasões e grilagem de terras. Cerca 47% das comunidades cadastradas pelo Tô no Mapa! contam ter enfrentado algum tipo de conflito nos últimos anos. Despontam as disputas por terra (28%) e por água (18%).
A falta de valorização dessas comunidades é prejudicial para todos. “As comunidades tradicionais são barreiras contra o desmatamento”, diz André, do ISPN. Num planeta cada vez mais quente, as áreas preservadas por esses povos absorvem o gás carbônico que aquece a atmosfera, preservam fontes de água limpa e a biodiversidade.
Hoje, os pescadores de Barra do Mamanguape ajudam outras comunidades a usar o Tô no mapa!. A ideia é, mesmo frente à morosidade e desinteresse do Estado, permitir que elas encontrem formas de proteger seus territórios, e garantir que continuem a existir.
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