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Como um lixão a céu aberto ameaça a saúde de quilombolas no Pará

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por Maria Páscoa Sarmento,
Liderança Quilombola de Salvaterra, Mestra em Planejamento do Desenvolvimento (NAEA/UFPA), Doutoranda em Antropologia (PPGA/UFPA)

Há mais de 20 anos o lixão a céu aberto do município de Salvaterra encontra-se localizado em um terreno na estrada municipal Ramal Bacabal, mais ou menos, a 3 km da sede municipal. Lá são depositados todos os dejetos e rejeitos produzidos pelos habitantes da cidade de Salvaterra, desde lixo doméstico, pneus, embalagens de venenos, restos de animais mortos (domésticos e carcaças oriundas dos açougues), vegetação dos quintais, vidros, metais, móveis e eletroeletrônicos danificados, até o lixo hospitalar, conformando um amontoado gerador de mal cheiros, chorumes, contaminações e indignidades, que invadem a referida estrada e atingem quem transita por ela a qualquer época do ano.

Diariamente, caminhões e carroças recolhem o lixo urbano e fazem o percurso até o lixão, isto quando chegam até lá, pois alguns costumam deixar suas cargas ao longo do caminho, a menos de 200 metros da Unidade Básica de Saúde Municipal Lauro Sousa, na saída/entrada da cidade para quem transita por este ramal, aproveitando-se do fato de não haver vigilantes ou fiscais da Prefeitura em atuação naquele local. No lixão, mais de 20 catadores, dezenas de cães, centenas de urubus, ratos, baratas, gaviões, garças, raposas e outros animais disputam tudo aquilo que ainda pode ser reaproveitado.

No entorno do terreno do lixão existem pessoas habitando em sítios e cultivando roças, hortas e plantações de quintais, bem como criando animais domésticos e que usam água de poços para dessedentação e irrigação das culturas. Porém, estudos efetivados pela UEPA Campus de Salvaterra alertam que o lençol freático encontra-se extremamente contaminado, sendo desaconselhado o uso desta água para consumo humano. Outra questão que se põe é o fato de diversos igarapés intermitentes, entre os quais o de Passagem Grande e o do Retorna, possuírem nascentes em áreas muito próximas ao local, como pode ser observado no período do inverno amazônico, contaminando assim estes e outros mananciais.

No município de Salvaterra existem 17 quilombos autorreconhecidos, agregando em torno de 7.000 pessoas, isto é, representamos 22% da população municipal. Historicamente nosso grupo humano sofre as consequências e mazelas do racismo que estrutura as relações sociais no Brasil, como entende Silvio Almeida e, em particular na Ilha do Marajó, onde lutamos há mais de 20 anos pelo direito a titulação de nossos territórios de pertença, tal como assegurado no Artigo 68 dos ADCT da Constituição Federal de 1988, bem como batalhamos para assegurar outros direitos sociais e políticos, como, por exemplo, o cumprimento da Convenção 169 da OIT e pela efetivação da educação escolar quilombola no município. E, para piorar, há um lixão no meio do nosso caminho.

Desafortunadamente, este dito ramal é a estrada oficial que interliga a sede municipal e dá acesso aos quilombos Bacabal, Santa Luzia, São Benedito, Pau Furado e Barro Alto. Juntos, congregamos mais de 400 famílias e em torno de 1.500 pessoas vivendo nestes povoados. Diariamente, ao longo dos últimos anos, nós, moradores destas localidades, que precisamos ir até a cidade, somos obrigados/as a trafegar em meio a toda a sorte de lixo, expondo-nos aos perigos e ao incômodo que isso representa, em especial na época do inverno amazônico, quando tudo alaga e a estrada é tomada por dejetos e pelo chorume.

Nascida e crescida em um destes quilombos – Barro Alto – relembro as inúmeras vezes que percorri a estrada de piçarra a pé, de carroça, bicicleta, seja na lama ou na poeira, ao longo de minha infância e adolescência e nas idas e vindas entre o quilombo e a cidade de Salvaterra antes da instalação do lixão, assim como parentes e vizinhos faziam e ainda o fazem cotidianamente. Para mim, é uma estrada de longas datas e vários caminhos. Já me levou longe, mas sempre me traz de volta para cá. Acredito que, assim como para mim, é uma estrada que percorre e transporta planos, sonhos, esperanças, amores, ilusões, desilusões e perdas de muita gente que mora ou já morou por estas bandas. Por ela transitam estudantes, professores, agricultores, vaqueiros, pescadores, coletores, lavradores com seus produtos e fazeres.

Nossos velhos e velhas contam que a estrada foi “aberta” com a chegada da Fazenda Paraíso do Ministério da Agricultura nos anos 50 para transporte de máquinas agrícolas e materiais para o empreendimento, e somente passou a ser mais usada pelo pessoal daqui a partir da década de 70, pois dantes preferiam os “atalhos”, os “caminhos velhos” como a Estrada do Clarindo e os rios para chegar aos outros povoados e às cidades de Soure e Salvaterra, em especial após esta tornar-se sede municipal.

A medida que a cidade foi crescendo, ao longo dos anos 90, o lixo doméstico precisou ser recolhido e retirado da área urbana, tarefa a cargo da gestão municipal, que muito oportunamente dispunha de um terreno no Ramal Bacabal e lá instalou o lixão municipal. A princípio localizado a uns 100 metros longe da estrada, com o aumento dos dejetos urbanos, foi crescendo, chegando ao tamanho atual, alcançando “a beira da estrada” e, desde uns quatro anos passados, todo um trecho da referida via.

A cada ano que passou daquele tempo para cá, nós, de Bacabal, Barro Alto, Pau Furado, Santa Luzia e São Benedito, acompanhamos apreensivos a expansão do lixão. Primeiro o fedor alcançou nossas narinas; depois o chorume encharcou nossos pés e pernas, e vieram as “coceiras brabas”, “os mijacões”, “as frieiras da lama do lixão”; em seguida violentaram nossos olhares os ossos e as tripas do gado e das galinhas, as carcaças dos cães sacrificados por conta do calazar, o plástico voando na brisa e enfeando as árvores, as latas, o vidro quebrado, o papel higiênico usado, a seringa/agulha de injeção e os inúmeros urubus sobrevoando o caminho. Hoje, nos alcançou a indignidade e a indignação ao sermos obrigados a transitar em meio ao lixão por quase 3 quilômetros, posto que agora este se expande desde a saída da cidade e toma as margens e o centro de nossa estrada, levado pelas enxurradas, por mãos e pés humanos e pelas bocas, garras e bicos de animais que vivem do lixo, como testemunhamos mais uma vez na semana passada.

Até agora, após diversas administrações municipais, ninguém tomou providências quanto a situação do lixão de Salvaterra, que segue crescendo desordenadamente, sem cercas, sem fiscalização, sem nenhuma normativa sobre o seu funcionamento. A cada ano, entre uma reclamação e outra dos transeuntes, o gestor municipal improvisa um arremedo de fiscalização e enjambra uma “organização” dos serviços de coleta e descarte de lixo. Ação prontamente esquecida no mês seguinte e retomada na próxima reclamação.

No cerne desta questão encontra-se uma das facetas do racismo estrutural da sociedade nacional, o chamado racismo ambiental, configurando-se na prática e na forma da localização do lixão em nossa estrada, em nosso caminho diário, no caminho de nossas casas. Lixão que causa constrangimento quando temos que atravessá-lo com familiares, amigos e visitantes rumo aos nossos territórios. Fato que produz e reproduz humilhações. Que nos expõe diuturnamente aos perigos da contaminação química e biológica ao sermos obrigados a transitar em meio ao lixo contaminado.

Configura-se como racismo ambiental a prática de expor deliberadamente e recorrentemente uma população racializada e/ou grupo étnico sociologicamente minoritário aos perigos e riscos representados por agentes químicos ou biológicos capazes de causar danos à saúde física, bem como à saúde psicológica, causando-lhe constrangimento, humilhação e diminuição de sua auto estima. É como é humilhante trafegar em meio ao lixo… ser tratado/a como lixo, sem importância….descartáveis… não-humanos(as).

Neste sentido é necessário enfatizar que nunca fomos consultados e ouvidos seriamente pela gestão municipal quanto a localização do lixão no ramal de acesso aos nossos quilombos. Quase sempre a resposta às nossas recorrentes reclamações vem em forma de ações paliativas, como o uso de tratores para empurrar o lixo para fora da estrada e, no verão, tocar fogo na lixarada. Na prática, o que fazem é seguir negando-nos a dignidade humana. No episódio mais recente de “extrapolação do lixão”, no sábado, 09/05/2020, em meio a pandemia da COVID 19, algumas lideranças obrigaram-se a deixar os territorios, na segunda-feira, e ir até a cidade fazer reclamações, denunciar e exigir a retirada do lixo que mais uma vez tomava toda a estrada e dificultava o trânsito, como mostram as imagens. Outra vez alguma providência mínima foi tomada pelo governante atual, colocando agentes de fiscalização e vigilante no entorno do lixão, entretanto estamos certos/as que será novamente uma medida paliativa, temporária e ineficaz.

Neste episódio é interessante ressaltar que quando um grupo de lideranças quilombolas dirigiu-se à Secretaria Municipal de Saúde de Salvaterra para denunciar e exigir providências quanto ao problema, um agente municipal informou que estavam cientes da situação do lixão e, inclusive, estiveram tentando incinerar o lixo hospitalar na Vila de Jubim, mas enfrentaram a resistência da comunidade e tiveram que retornar a incinerar o lixo do hospital municipal, que infelizmente tem 2 pacientes internados com a COVID 19, no lixão do Ramal Bacabal, na estrada dos quilombos, no caminho dos/das quilombolas. Percebemos isto como uma ação institucional discriminatória, ou ainda, discriminação indireta que tem por fundamento o racismo, como entende o professor Silvio Almeida.

Como se vê e como bem dizem nossos pretas e pretas: o 13 de maio não nos libertou!. Aqui, sentimos isso diariamente. Aparentemente, na ótica dos gestores municipais, ao contrário das pessoas de Jubim, nós podemos ficar à mercê do lixo contaminado. Nós podemos adoecer e mesmo morrer. Somos as vidas matáveis a quem Achille Mbembe se refere ao pensar a categoria necropolítica – uma política de morte que vem sendo adotada pela gestão municipal e que nos atinge diretamente. Uma política genocida que desconsidera a nossa condição humana, que, deliberadamente, parece querer garantir as nossas mortes, seja a morte física, seja a morte de nossa dignidade, seja a morte de nossa cidadania.

Mas não estamos conformados com esta situação, portanto, mais uma vez, como Zumbis e Dandaras, nos insurgimos. Através da Associação Malungu, protocolou-se um pedido de providências em relação ao lixão de Salvaterra junto ao Ministério Público do Estado do Pará e seguimos aguardando as deliberações judiciais. Queremos que retirem o lixão do meio do nosso caminho. Aqui, desde a Ilha do Marajó, Somos e Seremos Resistência. Viva Dandara! Viva Zumbi!

#QuilomboResiste. #MalungueirosdoMarajó

Publicado orginalmente pelo Instituto Cartografando Saberes

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