Há décadas, o Carnaval conta — e canta— as histórias do povo negro
Maria Teresa Ferreira
4 min
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“Carnaval, futebol
Não mata, não engorda e não faz mal
Carnaval, futebol
Se joga para cima e vira sol”
O carnaval de 2022 foi dedicado a cantar e a contar as lutas da diáspora. Nos mostrou elementos e objetos sagrados do candomblé em enredos dedicados à ancestralidade, aos orixás, a Seu Zé Pelintra, além de reverenciar importantes personalidades do povo preto que fizeram e fazem a diferença na sociedade brasileira no decorrer desses mais de 300 anos de presença negra no Brasil.
Em outros anos, a avenida já abrira espaço para narrar essas histórias de luta. O samba, o carnaval e seus enredos são territórios de resistência e continuidade da cultura e história do povo negro desde antes das senzalas. Os tambores de África ecoam na subida dos morros, adentram os quintais do subúrbio denunciando as dificuldades e cantando as conquistas da diáspora. “Quem cede a vez não quer vitória, somos herança da memória. Temos a cor da noite, filhos de todo açoite. Fato real da história”, canta Jorge Aragão.
O samba-enredo da Acadêmicos do Salgueiro em 1978 — Do Yourubá à luz, a Aurora dos Deuses — já nos contava sobre a criação do mundo de acordo com a tradição Yorubá. “Misto de infinito e eternidade. Também teve seu momento de vaidade. Criou a terra e o céu de Oxalá. Pra gerar Angaju e Iemanjá. E Yemanjá, além de Xangô, em seu ventre doze entidades gerou. Para reinarem pregando a paz e o amor.”
O samba enredo vencedor de 1982 da paulistana Vai-Vai tinha o mesmo tema, a criação do mundo: Orun Aiyê — O Eterno Amanhecer. “Surgiu um raio como um raio de luz, a imagem de Ifá no rosário, eu vi nossos babalaôs transformando em passarela o universo que Orun criou.”
Kizomba Festa da Raça, enredo da Vila Isabel de 1988, escrita por Martinho da Vila (também homenageado no carnaval de 2022) já cantava a insurreição de Anastácia, a voz de Clementina de Jesus como elemento da cultura popular e o candomblé dançando com Mãe Menininha do Gantois.
A luta do povo negro por direitos e condições dignas de trabalho também já foi matéria para os carnavalescos. Jamelão eternizou o carnaval da estação Primeira de Mangueira em 1988 com o refrão do enredo “100 Anos de Liberdade, Realidade ou Ilusão?”: “O negro samba, negro joga capoeira, ele é o rei na verde e rosa da Mangueira”, nos lembrando “que o negro construiu as riquezas do nosso Brasil”.
Esse ano o carnaval acabou no 1 de Maio e me fez lembrar que, lá lá nos idos de 2008, o enredo da Unidos de Vila Isabel cantou Trabalhadores do Brasil as conquistas trabalhistas. “ Voz de quem nunca desistiu, a Era Vargas ouviu, Consolidar nossas conquistas, em direitos trabalhistas. Comemora quem tanto lutou. Tempo de industrialização, candangos então erguem Brasília. Sindicato consciente. Terra para nossa gente cultivar a democracia. Avante trabalhadores…”
O trabalho, o samba e a espiritualidade são o tripé em que se sustentam os elementos da luta pela sobrevivência das pessoas negras na diáspora no Brasil. Os atabaques, buzios, magia e, sobretudo, a temporalidade do povo negro nos molda a inventar, recriar e aperfeiçoar inúmeras tecnologias de sobrevivência para manter nosso legado.
O ditado popular nos diz “que o ano começa depois do carnaval”, e esse ano a simbologia das imagens, como as exibidas pela Acadêmicos da Grande Rio, campeã do carnaval 2022, reforça a tomada de consciência de um povo. E Exú com sua astúcia, perspicácia e sabedoria, comendo seu padê em cima do mundo, nos mostra sua força na condução dos caminhos da humanidade.
Foto de topo: o Exú da Acadêmicos da Grande Rio sobe ao topo do mundo (Reprodução / Instagram)
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