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O Brasil naturaliza o trabalho escravo doméstico

Carla Aparecida Silva Aguilar

4 min

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Imagine passar 40 anos se dedicando a uma família que não é sua – nem de sangue e nem por escolha. Sem feriados, datas comemorativas, férias ou salário. A recompensa é ter comida e moradia “de graça”. Num regime em que o expediente nunca termina, as tarefas domésticas se estendem sem fim. A dispensa só chega com a demissão, quando alguma doença te acomete já na velhice. Seus antigos patrões te mandam embora dizendo que você é “um lixo, não serve para nada”. Ou, pior: que você é “uma macaca”. Essa história, perversa, é real. Foi vivida por uma mulher que nós, do Centro de Apoio e Pastoral do Migrante (CAMI) acompanhamos desde o final de 2022. Há muitas outras histórias semelhantes a essa.   

O ano de 2022 foi aquele em que se registrou o maior número de vítimas resgatadas em situações análogas à escravidão desde 2013, com 2575 ocorrências registradas. Atualmente, acompanho seis delas: mulheres encaminhadas ao CAMI pelo Ministério Público do Trabalho entre setembro do ano passado e março deste ano. Enquanto assistente social e gerente da instituição, tento humanizar o processo de adaptação das resgatadas e criar, em conjunto com elas, um projeto de vida que procure integrá-las à sociedade. 

Os casos apresentam, com recorrência, muitas semelhanças. Após décadas de trabalho doméstico, elas são descartadas por adoecerem. Algumas das mulheres que atendo sofrem com perda de visão provocada pelo diabetes, úlcera varicosa e Alzheimer. Todas são mulheres negras, órfãs ou de famílias muito pobres, pegas para trabalhar ainda na infância. Poucas se relacionaram romanticamente em alguma fase da vida e as que se casaram romperam o relacionamento com muita brevidade. Além disso, nunca viajaram nem sequer estudaram. 

Em situações como essas, as atitudes da mulher escravizada e dos patrões também se repetem em diversos dos casos. Ela não se vê como uma pessoa que viveu um regime análogo a escravidão; eles não se mostram arrependidos do que fizeram, uma vez que enxergam a ação como uma benfeitoria a essa mulher que, sob suas concepções, não tinha perspectiva de futuro. Muitas vezes, a vítima também se magoa profundamente ao ser dispensada, porque se sentia parte da dinâmica afetiva familiar e não como uma protagonista apenas dos afazeres domésticos. 

Um dos nossos maiores desafios, no CAMI, é prestar ajuda emocional. Esse não é um problema previsto por nós, que sempre fomos livres, mas ocupar a rotina da vítima enquanto ela tenta lidar com o trauma de se separar da única realidade que conhecia se mostra uma tarefa transversal: temos que acolher sua solidão enquanto tentamos adequá-la a uma vida pós-resgate. Fora a falta de vínculo com outras pessoas, ela terá dificuldades em aspectos que a sociedade já entende como naturais. Muitas não sabem diferenciar uma nota de cinco reais de uma de cinquenta, por exemplo. 

A escravidão moderna faz parte da realidade brasileira. Ela é perversa, sobretudo, porque é naturalizada. Isso fica evidente naquelas ocasiões em que o “patrão”  relativiza a liberdade ao dizer que “ela está aqui porque quer” ou “essa é uma caridade que eu faço por tirá-la de uma situação ruim”. Isso não só legitima a maldade e culpabiliza a vítima por ter sido escravizada, mas também maquia um contexto de ilusão. 

As mulheres com as quais convivo me contam que permaneceram sendo exploradas porque acreditavam ser parte da família. Assim que se retiram desse regime, ficam sem moradia e sem acesso a elementos básicos da vida. Em 1888, depois de oficialmente abolida a escravidão, foi também esse o destino de parte da população negra. Nas desigualdades brasileiras, resiste o eco desse passado escravista. 

Foto de topo: pixabay

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