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Sistema prisional distorce discurso sobre gênero e sexualidade para justificar aumento de vagas, diz antropóloga

Em Pavilhão das Sereias, Vanessa Sander analisa as vivências de mulheres trans em ala LGBTQIA+ de presídio. Durante debate em São Paulo, autora e sobreviventes do cárcere discutiram como sistema prisional reforça estereótipos de gênero

Imagem propriedade da Brasil de Direitos

Rafael Ciscati

7 min

Pátio do pavilhão 4 do da Penitenciária Jason Albergaria durante semana do orgulho LGBT em 2018 (Foto: Vanessa Sander/ Acervo Fundo Brasil)

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Foto de topo: Pátio do pavilhão 4 da Penitenciária Jason Albergaria durante semana do orgulho LGBT em 2018 (Foto: Vanessa Sander/ Acervo Fundo Brasil)

Logo que chegou à penitenciária feminina de Santana, na zona Norte de São Paulo, Tatiane Bessone (ou Leo, como prefere que a chamem) compreendeu que precisava aprender, e bem depressa, as regras que governavam a convivência naquele espaço. Elas não se limitavam às normas oficiais da instituição penitenciária – “Contra essas, a gente podia se revoltar”, afirma. Inescapáveis eram as regras, muitas vezes não-ditas, que definiam os papéis ocupados por cada detenta, e que ditavam como elas deveriam agir entre si  e com as agentes penitenciárias. 

Leo era jovem. “Tinha 22 anos e poucas ideias na cabeça”, brinca.  Já na época, se apresentava como “sapatão”. Na definição dela, uma mulher lésbica, cisgênero, cujos gestos e formas de vestir remetem à imagem comumente associada ao gênero masculino. 

No emprego em que Leo trabalhou enquanto cumpria pena, cabia as sapatões fazer o trabalho pesado. “Todo mundo queria ter uma sapatão na equipe, porque sabia que podia contar com a gente”. Se eclodisse um conflito entre detentas e agentes penitenciárias, as lésbicas masculinizadas ficavam na linha de frente, e eram as primeiras à apanhar. Geralmente, ela lembra, os casais na penitenciária eram formados por uma sapatão e uma mulher que performava feminilidade. O código de conduta interno informava que, para evitar confusões, uma sapatão jamais deveria se interessar pela mulher de outra. Leo passou 15 anos atrás das grades. “Eu sabia que seria uma experiência ruim”, conta. “Para amenizar, decidi que ia namorar”. 

Histórias como a de Leo abundam entre os muitos casos coletados pela antropóloga Vanessa Sander durante os anos em que frequentou a ala LGBTQIA+ do presídio Professor Jason Albergaria, em São Joaquim de Bicas, região metropolitana de Belo Horizonte (MG). Seu objetivo era investigar as experiências vivenciadas por mulheres trans no cárcere. 

Nas suas entrevistas, ela confirmou um dado que a bibliografia sobre prisões  já sugeria: a prisão “reflete e consolida ainda mais a estrutura de gênero da sociedade como um todo”, escreve Sander na introdução do livro Pavilhão das sereias, decorrente da sua tese de doutorado. Atrás das grades, estereótipos de gênero são exacerbados. Eles definem como as pessoas presas convivem entre si – caso da lésbica masculinzada que se encarrega dos trabalhos pesados.  Mas não só: esses estereótipos  guiam, também, as ações do poder público.

O contato com as mulheres encarceradas também trouxe a Sander algumas surpresas. Uma delas surgiu   já nas primeiras entrevistas. Sander esperava ouvir histórias que falassem sobre dor e violência. Elas existiam, claro. “Mas as mulheres que entrevistei preferiam falar sobre seus relacionamentos ”. Na dureza do cotidiano da prisão, namorar era uma forma de encontrar alívio e proteção. 

Leo e Sander se encontraram na última quarta-feira (27), durante o  debate “LGBTQIA+ na prisões”, organizado pelo Instituto Terra, Trabalho e Cidadania (ITTC) em São Paulo. Também participaram da conversa Lucca Conde, homem transgênero sobrevivente do cárcere; e Ghi Zullueta, mulher trans filipina que, por 5 anos, esteve presa no Brasil. A mediação coube a Renato Camps, comunicador do ITTC. 

Existem 10457 pessoas LGBTQIA+ presas no Brasil. O dado consta em levantamento feito pelo Departamento Penitenciário Nacional (Depen) e divulgado em 2020 (outros levantamentos chegaram a conclusões ligeiramente diferentes, como Brasil de Direitos mostrou em matéria de 2021) A cifra  parece modesta  frente às mais de  800 mil pessoas que compõem a população carcerária brasileira, a terceira maior do mundo em número absolutos. As experiências e reflexões compartilhadas ao longo do debate, no entanto, mostram como gênero e sexualidade são lentes importantes através das quais analisar o funcionamento do sistema carcerário. Elas ajudam a entender a capacidade que esse sistema tem de, segundo Sander, “distorcer o discurso da defesa de direitos de modo a gerar mais prisões”. 

Da esquerda para a direita: Renato Camps, Lucca Conde, Vanessa Sander, Leo, Ghi Zullueta e a pessoa coordenadora do ITTC, Cátia Kim (foto: Rafael Ciscati)

Da esquerda para a direita: Renato Camps, Lucca Conde, Vanessa Sander, Leo, Ghi Zullueta e a pessoa coordenadora do ITTC, Cátia Kim (foto: Rafael Ciscati)

Sander observou essa mecânica em ação nos anos que passou no Jason Albergaria. A ala LGBTQIA+ do presídio foi a primeira do gênero criada no Brasil. Na época, o governo mineiro argumentou que a novidade era benéfica. “A proposta foi vendida como uma forma de humanizar o sistema prisional e proteger essas pessoas da violência sexual”. Para ser aceita no pavilhão segregado, a pessoa presa assinava um documento declarando ser gay ou transexual. De saída, com celas mais vazias, a ala registrava menor número de conflitos, e foi considerada um sucesso. “Mas não demorou para começar a ser descrita como uma bomba prestes a explodir”, lembra Sander. 

A crise da ala LGBTQIA+ do presídio foi uma decorrência dos problemas que afetavam o restante da instituição. Superlotada, a penitenciária viu aumentar o número de presos que solicitavam a transferência para o pavilhão segregado. Com o tempo, ele também lotou. 

Sander conta que a administração passou a aventar uma série de possíveis soluções para o problema. A primeira delas foi uma tentativa, frustrada, de definir quem de fato era LGBTQIA+ . Logo, ficou evidente que era impossível distinguir quem pertencia à comunidade de quem assinava a autodeclaração apenas como forma de migrar para uma ala menos abarrotada. 

O passo seguinte foi tentar apontar se os casais formados na ala, que compartilhavam celas, tinham de fato um relacionamento. O critérios para fazer essa análise reforçavam estereótipos de gênero. “Se as pessoas andam de mãos dadas, e a mulher da relação limpa a cela onde os dois vivem, então dá para dizer que eles são um casal”. 

Por fim, a saída encontrada para a superlotação do pavilhão foi a ampliação do presídio. Para supostamente proteger as pessoas encarceradas, diz Sander, o sistema decidiu criar condições para encarcerar ainda mais gente. “O que fizeram ali foi uma torção da gramática dos direitos humanos”, diz a antropóloga. “O sistema encontrou uma forma de usar orientação sexual e identidade de gênero para justificar a ampliação do aparato repressivo”. 

O modelo adotado em Minas Gerais, com o tempo, se espraiou por outros estados do país. Há alas LGBT em pelo menos 76 unidades prisionais, segundo o Depen. Na visão da antropóloga, essas estratégias não são capazes de garantir direitos. “Passei anos frequentando alas LGBT. Em nenhum momento, vi o nome social da pessoa presa ser respeitado”, conta. 

Os depoimentos das outras pessoas presentes ao evento do ITTC também apontaram que o desrespeito à identidade de gênero é o padrão no ambiente prisional. Ele transborda da história de Ghi Zullueta. Ao ser presa, ela conta que teve os cabelos — muito longos e lisos — raspados. Na prisão,onde seus companheiros de ala eram homens cisgênero, sofreu uma sucessão de abusos sexuais. Quando os denunciava, conta, era punida pela direção do presídio. Ghi só conseguiu encontrar alguma proteção quando começou um relacionamento com um homem cis. A partir dali, os abusos cessaram. Seu nome social, no entanto, nunca foi pronunciado pelos funcionários da penitenciária. 

Histórias como as dela apontam que, em lugar de buscar adaptar prisões às necessidades de pessoas LGBTQIA+, o ideal é encontrar formas de diminuir o número de pessoas encarceradas — e expostas a violações de direitos. “Enquanto sociedade, somos criativos para imaginar distopias, para pensar o fim do mundo”, diz Sander. “Precisamos usar essa criatividade para pensar um mundo sem prisões”.

 

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