Socioeducativo: por que aumentar o tempo de internação não é a solução
Projeto de lei, que amplia tempo máximo de internação de três para cinco anos, contraria o ECA e a Constituição Federal. Evidências mostram que a privação de liberdade prolongada aumenta reincidências

Coalizão pela Socioeducação
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Reduzir a discussão sobre adolescentes em cumprimento de medida socioeducativa a uma simples equação entre crime e punição é um equívoco que sustenta a reprodução de desigualdades históricas. Dados do Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (SINASE) sinalizam que o sistema socioeducativo brasileiro não é neutro: entre 2024 e 2025, o número de adolescentes sob medidas socioeducativas cresceu 8,2%, e 72,9% desses jovens são pretos ou pardos. Além disso, 27% cumprem medida por tráfico de drogas — atividade classificada pela Convenção 182 da OIT como uma das piores formas de trabalho infantil. Mais do que números, esses dados denunciam um padrão estrutural: a socioeducação atua como instrumento de controle social, reproduzindo racismo, exclusão e seletividade punitiva.
Em meio a este contexto, o Projeto de Lei nº 1.473/2025 — recém-aprovado na Comissão de Direitos Humanos do Senado — propõe não apenas estender o tempo máximo de internação, mas também reconfigurar princípios centrais do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). As mudanças incluem a supressão do princípio da brevidade, aumento do prazo máximo de internação para até cinco anos em casos de violência ou grave ameaça, e até dez anos em casos de homicídio ou violência sexual; substituição da reavaliação judicial obrigatória de seis meses por um período de um ano; e alterações na liberação compulsória aos 21 anos. Em termos práticos, o projeto propõe manter adolescentes privados de liberdade durante toda a adolescência e parte da juventude, transformando o sistema socioeducativo em instrumento de punição prolongada, em claro descompasso com os princípios garantistas da Constituição e do ECA.
Um retrocesso legal e internacional
O PL 1.473/2025 não se limita a questionar políticas nacionais: ele desafia normas constitucionais e compromissos internacionais assumidos pelo Brasil. Viola o art. 227, §3º, V, da Constituição, que prevê que medidas privativas de liberdade respeitem a brevidade, a excepcionalidade e a peculiaridade da pessoa em desenvolvimento. Contraria tratados internacionais, como a Convenção sobre os Direitos da Criança da ONU, as Regras de Beijing e as Diretrizes de Riad. O Comentário Geral nº 24 do Comitê da ONU (2019) é explícito: aumentar prazos de privação de liberdade é incompatível com a obrigação do Estado de promover reintegração e não punição. Ignorar tais normas não é apenas ilegal, é expressar uma política de gestão autoritária sobre a juventude negra e periférica.
O prolongamento da internação
Não há evidências de que ampliar o tempo de internação reduza a violência. Pelo contrário, a privação prolongada aumenta reincidência, estigmatização e danos ao desenvolvimento psicossocial. Manter adolescentes isolados por anos transforma a medida socioeducativa em castigo prolongado, deslocando o foco da proteção integral e da reintegração social para o controle de corpos jovens, predominantemente negros e periféricos.
Segundo o Levantamento Nacional do SINASE 2024, 31,7% dos atos infracionais correspondem a roubos e 27% ao tráfico de drogas — práticas frequentemente relacionadas à sobrevivência em contextos de vulnerabilidade. Além disso, 81% dos adolescentes não participam de atividades laborais remuneradas; 37% não têm acesso à formação profissional; e 42,8% cursam apenas o Ensino Fundamental. Nesse cenário, a privação prolongada não corrige comportamentos, mas consolida trajetórias de exclusão, amplia barreiras de acesso à educação e ao trabalho e reforça a estigmatização social.
Do ponto de vista econômico, a lógica também se mostra contraditória. O custo médio de manter um adolescente internado ultrapassa R$ 9 mil mensais. Prolongar o período de internação aumenta despesas públicas, superlota unidades e eleva o risco de violações de direitos, contrariando o HC 143.988 do STF. Enquanto isso, os gastos com segurança pública cresceram 6,1% em 2024, alcançando R$ 153 bilhões, enquanto educação, cultura e assistência social seguem subfinanciadas.
Esses dados mostram uma escolha política: optar pelo encarceramento prolongado prioriza a contenção da juventude negra e periférica em detrimento de políticas de educação, cuidado e inclusão. Essa decisão legitima o abandono social, naturaliza desigualdades e transforma a socioeducação em instrumento de segregação, reforçando a percepção de que juventude em situação de vulnerabilidade é ameaça, não potência.
A disputa pelo sentido da socioeducação
Mais do que uma política de justiça juvenil, a socioeducação é um campo de disputa simbólica. Projetos como o PL 1.473/2025 tentam deslocar seu sentido pedagógico para a repressão, transformando adolescentes em sujeitos de risco a serem isolados em vez de cidadãos em desenvolvimento a serem apoiados. Essa disputa é legislativa, cultural, ética e histórica. Ela coloca em tensão a promessa de proteção integral do ECA frente à pressão política e midiática de criminalização da juventude negra e periférica. Em última instância, o futuro da socioeducação dependerá de quem define seu sentido: se será espaço de oportunidades, cuidado e reintegração, ou espaço de confinamento, exclusão e reprodução de desigualdades.
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