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A pandemia, as mulheres e o trabalho

Maria Teresa Ferreira

6 min

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Estamos preste a entrar na primavera (agora, no finalzinho do mês de setembro), mas foi no outono que a pandemia explodiu no Brasil. Parece já uma eternidade, não? Vai longe o dia em que foi anunciado na TV que todas as atividades seriam suspensas por causa de um vírus chamado Sars-cov-2, que provocava uma doença nova, a Covid-19. Pensei: putz, e agora?

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As rotinas que governavam nossas vidas mudaram. Aulas suspensas, serviços de transporte operando com capacidade reduzida, shoppings e comércios de rua fechados, empresas em férias coletivas — no meio do ano, coisa que até pouco tempo atrás era impensável. Indústrias e fábricas diminuíram a produção, ou pararam as máquinas. As praias foram interditadas, bares ficaram sem expediente. As pessoas, ou ao menos as que tiveram a chance, ficaram enclausuradas nas suas casas.

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O que descobrimos no decorrer dos meses foi o quanto a vida é frágil. A pandemia já soma mais de 800 mil mortos no mundo todo. Mais do que isso, ficou claro o quanto o modus operandi da sociedade contemporânea é questionável e destrutivo.

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Simone de Beauvoir diz que ” Basta uma crise política, econômica e religiosa para que os direitos das mulheres sejam questionados” . Nesse momento, na vida das mulheres, o impacto da pandemia se soma à sobrecarga física e emocional decorrente do confinamento.
 
Segundo relatório da ONU Mulheres, fomos as mais afetadas pela pandemia. Os principais motivos foram o aumento da violência doméstica e do feminicídio. Além disso, as mulheres somam 2/3 dos trabalhadores em saúde no mundo expostos ao vírus. São, também, maioria das trabalhadoras domésticas e trabalhadoras do mercado informal. O recorte de raça é fundamental para entender o lugar das mulheres na pandemia.
 
O vírus e o trabalho doméstico
 
Há ainda outra questão, relacionada à orgnização do trabalho em casa. A filósofa Silvia Federici, em seu livro “Calibã e a Bruxa” trata da não remuneração do trabalho doméstico como a mão forte do capitalismo e do controle do corpo das mulheres. Angela Davis, em “Mulher, Raça e Classe”, traz um panorama da trajetória de trabalho e reivindicações das mulheres negras pela valorização da sua existência.
 
E o que isso tem a ver com a pandemia?
 
Tudo. A pandemia pode ter paralisado mercados globais, mas fez as tarefas domésticas triplicarem. Com as aulas suspensas por causa da pandemia as crianças estão em casa, e exigem cuidados constantes. Acrescente a isso o acompanhamento pedagógico – escolar que o modelo de ensino à distância exige, e você terá uma mãe-professora exausta. Há, ainda, os cuidados com idosos e doentes da família. Isso tudo sem termos deixado de lado nossas obrigações profissionais, no caso das mulheres que conseguiram manter seus empregos ou trabalham em home office.
 
Ufa, achei que o parágrafo não ia acabar.
 
Quantas de nós não se viram, nos últimos meses, com o computador ligado, as panelas no fogão, os cadernos das crianças espalhados sobre a mesa e um relatório com horário par entregar?
 
No caso das mulheres que, como eu, continuaram a trabalhar presencialmente:
quantas vezes ao chegar em casa, você deparou com a pia transbordando de louça, as camas por fazer, a comida por preparar… e as pessoas que ficaram em casa se engalfinhando para decidir quem vai fazer o quê?
 
Sem contar as vezes em que, no meio de uma reunião, seu chefe e colegas foram surpreendidos pelos latidos do cachorro, ou os apelos chorosos das crianças (que veem a mãe em casa e acham que aquela é uma oportunidade de exercitar o afeto).
 
A escrita desse texto foi interrompida uma centena de vezes.  Primeiro, foi o correio que entregou a roupa de Naruto do Davi. Parei para receber a encomenda. Vê-lo vestido. Tirar foto. Voltei para o laptop, organizei algumas ideias, escrevi alguns parágrafos e, quando estava prestes a engrenar… minha mãe pediu para colocar um bolo no forno! Deparei com a pia cheia de louça. Agora já passam das 18:00 horas, e a janta precisa ser preparada. O texto fica para depois.
 
A uberização das relações trabalhistas e o home office trouxeram para a sociedade a ilusão de que o trabalho está apartado das leis de proteção ao trabalhador, e de que estamos mais próximos de concretizar a falácia capitalista do “seja seu próprio chefe”. Ou, ainda, “seja um empreendedor”. Sem políticas públicas de incentivo, sem investimento para os pequenos negócios, sem linhas de crédito com juros baixos e  sem uma economia pensada para atender um público que, pelo seu histórico, já nasceu em situação de vulnerabilidade. Na prática, e principalmente para as mulheres, isso significa o aumento da carga de trabalho. Significa sobrecarga psíquica.
 
Foram inúmeras as vezes em que sentei na frente do laptop para escrever e fazer cumprir o prazo estabelecido para entrega do material, mas como inúmeras outras mulheres fui interrompida pelas urgências da vida doméstica. Hoje, ela se mistura à vida profissional. Nessa mistura de cobranças e obrigações, não há início, meio e fim. Ou melhor, há um final de dia exaustas.
 
Me pergunto como Simone de Beauvoir, Silvia Federici e Angela Davis conseguiram ser porta vozes de contribuições tão importantes para a emancipação da vida das mulheres? Como driblaram as agruras das triplas jornadas (ou da jornada contínua). A desvalorização do gênero feminino, a violência da polícia e um estado opressor e capitalista?
 
Eu imagino que cada uma delas cultiva em si uma existência revolucionária, que tem na perspectiva da transformação a possibilidade de ser instrumento de mudança. Nesse momento onde tudo se mistura, quero crer que o eco dessas e de outras tantas vozes fará com que nós, mulheres, tenhamos força e coragem para ultrapassar as barreiras impostas pelo capitalismo, masculino e heteronormativo e triunfar na materialização de uma sociedade que nos inclua não como força de trabalho, mas como cidadãs.

Foto de topo: Nappy 

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