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A reintegração de posse de Erica Malunguinho

Rafael Ciscati

14 min

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A deputada estadual  Erica Malunguinho (PSOL- SP) chegou ofegante ao auditório Teotônio Vilela, na Assembleia Legislativa de São Paulo (Alesp), e logo pediu o microfone: “Eu estou sem voz, gente”, disse, assim que percebeu que o aparelho estava desligado. “Porque hoje eu fui pastora: preguei o dia inteiro. Foi exaustivo”, explicou, arrancando risos dos presentes.

Era começo de uma noite chuvosa e Malunguinho tivera um dia particularmente agitado. O motivo da correria era o projeto de lei 346/2019. De autoria do deputado Altair Moraes (Republicanos) o texto defende  que o sexo biológico seja adotado como único critério para definir se um atleta é homem ou mulher, e se deve competir em equipes femininas ou masculinas. Caso aprovado, o PL pode inviabilizar a presença de atletas transgênero nos esportes: tornaria ilegal que a  jogadora de vôlei Tifanny, por exemplo — uma mulher trans que joga na equipe feminina do Bauru — participasse de competições travadas no estado de São Paulo. A votação da medida, que tramita em regime de urgência, fora marcada para aquela tarde. Em meio a embates sobre a reforma da previdência dos servidores paulistas, e depois de sofrer pressão da oposição, os parlamentares mudaram de ideia. Já no começo da noite, decidiram que a votação seria adiada para o ano seguinte.

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O adiamento foi, em parte, costurado por Malunguinho. Ao longo de todo o dia, ela circulara pelos gabinetes da Assembleia, convencendo colegas a votar contra o PL. Durante a sessão plenária, quem olhasse do mezanino poderia vê-la abordando parlamentares a cada oportunidade: “Eu estava ali que nem uma pomba-gira cigana distribuindo a palavra de Exu”, resumiu. “Consegui virar dois votos a nosso favor”, garantiu, sem revelar de quem.

Mesmo com a chuva que assolava São Paulo, cerca de 30 ativistas tinham se reunido para acompanhar a discussão presencialmente. Encerrada a sessão no plenário, o grupo rumara para o Teotônio Vilela. Apesar da voz ligeiramente rouca, Malunguinho dava poucos sinais de cansaço. Enquanto aguardava o microfone ser conectado, fazia graça, emendando uma história na outra. No pequeno tablado do auditório, era acompanhada pelas também deputadas Isa Penna (PSOL-SP), Mônica Seixas e Erika Hilton, co-deputadas pela Bancada Ativista. “Deixa eu arrumar meus óculos para conseguir enxergar vocês melhor”, brincou, mirando os rostos logo à frente. “Agora que eu uso óculos, consigo ver cada poro, cada imperfeição de pele, cada maquiagem mal aplicada”, disparou ligeira, no que foi seguida por nova leva de risadas.

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Entre idas e vindas, o PL 346 tramita na Alesp desde abril. Nesse meio tempo, entrou e saiu da pauta de votação por três vezes. Em entrevistas, o deputado Altair Moraes chegou a defender o texto como uma medida moralizadora: “Elaborei vários projetos que garantem idoneidade às competições esportivas” definiu, em entrevista ao jornal O Estado de S. Paulo. Segundo ele,  atletas trans possuem vantagens biológicas capazes de desequilibrar uma disputa. “O homem cresce com um nível de testosterona maior. Possui massa magra e densidade óssea maiores. Justamente por isso, as competições são divididas entre masculino e feminino”, asseverou, noutra ocasião.

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Naquela tarde, enquanto o projeto ainda ameaçava ser votado, Malunguinho e as colegas circularam, entre os deputados, uma carta assinada pelo endocrinologista Magnus Dias da Silva, da da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). Enxuto, o texto afirmava não haver evidências de que atletas trans tivessem qualquer vantagem competitiva. “Esse, na verdade, é um projeto excludente”, afirmou a deputada para a plateia do auditório, abandonando o tom jocoso de minutos atrás. “Existe uma demanda reprimida pelo processo de exclusão e apagamento da população LGBT. Esse público, que estava escondido, agora se sente legitimado”. Na avaliação dela, o adiamento da votação podia representar um trunfo: mais meses disponíveis para, quem sabe, convencer a Assembleia a votar contra a medida. “Mas, se não for possível barrar esse texto excludente pelo voto, vamos levar a questão ao STF”, declarou.

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Diante do resultado agridoce, preferiu encerrar a fala numa nota alta: “Esse resultado, hoje, demonstra a importância de estarmos todos juntes. Demonstra a importância de estarmos aqui , cuidando de todes”, afirmou, tomando o cuidado de manter neutro o gênero dos pronomes. Juntando as duas pontes da noite, abandonou o tom solene para se despedir com um sorriso : “É isso. Axé e simbora”, disse, antes de seguir para mais um compromisso.

Erica Malunguinho é uma mulher de 38 anos que usa os cabelos negros longos trançados. Boa contadora de histórias, costuma entremear suas frases com metáforas e parece ter facilidade para manter o bom-humor. É uma característica de que se vale na política. Não raro, responde com sorrisos, e um leve deboche, às provocações e críticas dos adversários.  “A gente tem é que rir um pouco”, resumiu em uma tarde em meados de novembro. O encontro no Teotônio Vilela aconteceria só dali a algumas semanas, mas Malunguinho aceitara conversar com a Brasil de Direitos sobre o andamento do projeto de lei.

Antes do início da entrevista, no entanto, um incidente no plenário desviou a atenção da deputada.  A provocação, que ela tentava encarar sem perder a ternura, partira do deputado Douglas Garcia (PSL). Dizendo-se incomodado com as viagens de Malunguinho, Garcia se queixou da colega: “A deputada Erica Malunguinho nunca para na Assembleia. Ela vai para Comissão de representação quase toda semana. Um verdadeiro absurdo”, afirmou, acrescentando que a Alesp não deveria bancar deslocamentos para encontros com “transquilombolas” — um neologismo, de autoria de Garcia, que unia as palavras transexuais e quilombolas.


O motivo da queixa  era uma viagem que Malunguinho tinha marcada para dali a alguns dias, com destino a Palmares, em Alagoas. Outros eventos semelhantes tinham sido distribuídos pela agenda da deputada, como parte das atividades previstas para o mês da consciência negra. No púlpito da Alesp, Garcia foi seguido pela deputada Janaína Paschoal: “Todos nós temos muito orgulho da deputada Erica, reconhecemos sua luta e seus méritos”, começou Paschoal para, a seguir, adicionar a ressalva de que as muitas viagens da parlamentar causavam estranhamento à bancada do PSL.

Apesar de  calma, Malunguinho não disfarçava a contrariedade: “O grande problema é que eles não entendem de orçamento” disparou, séria. “Falam que a gente onera a casa, mas a minha mandata não usa nem 40% da verba de gabinete”. O semblante fechado foi logo substituído por um sorriso assim que uma amiga da deputada apareceu à porta da sala, para um abraço rápido: “Você viu? Eles estão tentando acabar comigo”, riu a parlamentar. “Mas eles não vão não”.

Àquela altura, Malunguinho se aproximava do final de seu primeiro ano de mandato. Ou mandata — ela prefere o termo no feminino. Apesar de recém-chegada, como cerca de 40% dos colegas da atual legislatura, já circulava pelos corredores da Alesp com a naturalidade de uma veterena. Acompanhá-la significa ser parado um punhado de vezes, enquanto a parlamentar é procurada por colegas para discutir um projeto de lei, ou conforme funcionários da casa a cumprimentam. Não raro,  elogiam o esmero do figurino: “Ah, deputada Erica. Elegante como sempre”, diria um senhor naquela mesma tarde, enquanto Malunguinho se dirigia ao plenário para fazer as fotos que acompanha essa reportagem.


As muitas gentilezas contrastam com os embates, por vezes acalorados, que cercaram a parlamentar nesses primeiros meses de legislativo paulista: “São, muitas vezes, críticas rasteiras, que fazem a mim e aos meus projetos”, afirmou, fazendo referência à polêmica da tarde.

Considerado um ambiente conservador, a casa já recebeu críticas  pela falta de diversidade: dos 94 deputados, 81% são homens. A maioria, 88%, se declara branca. A eleição de Malunguinho, a primeira parlamentar trans da Alesp (além dela, há a deputada Erika Hilton, uma das nove co-deputadas da bancada ativista), veio acompanhada por alguns choques nesse cenário. “Entender o que acontece comigo aqui é entender o que acontece com as pessoas trans pelo Brasil”, afirmou a deputada. “É muito comum que as pessoas aqui digam que me respeitam.  Alguns elogiam minha roupa, outros dizem que apertam minha mão — como se isso não fosse parte dos pactos mínimos de civilidade”.

O primeiro, e mais rumoroso embate dessa sequência aconteceu ainda em abril. Na ocasião, o deputado Douglas Garcia afirmou que, caso encontrasse uma mulher trans dividindo o mesmo banheiro que sua mãe ou irmã, expulsaria a pessoa “no tapa”. Em resposta, Malunguinho pediu que fosse aberto um processo contra o deputado, por incitação à violência. O desfecho do incidente viria em outubro , quando o Conselho de Ética da Assembleia aplicou uma advertência verbal ao deputado.

Mas, o choque mais representativo foi, muito provavelmente, a longa discussão com Altair Moraes pelo PL 346. Ao longo dos meses anteriores, Malunguinho e sua equipe tentaram preencher com ciência uma discussão que, na avaliação dela, fora influenciada por obscurantismo e preconceito: “Nós tentamos estabelecer um diálogo, de modo a debater os prós e contras dessa medida excludente”, disse a deputada. “Eu propus a realização de uma audiência pública, com debatedores indicados por mim e por ele. Mas a audiência foi boicotada”.  Na leitura dela, o projeto fora pensado quase como uma peça de propaganda, destinada a animar o eleitorado de políticos conservadores: “Essa é uma pauta que não partiu dos atletas e que não reflete uma preocupação da categoria. Afinal, quase não há atletas trans competindo profissionalmente”. Às vésperas da votação em plenário, a deputada parecia desanimada com os prognósticos: “Esse projeto vai ser aprovado, porque existe um pacto firmado para que ele passe”, disse.

Mesmo assim, Malunguinho estava satisfeita com o saldo de seu primeiro ano de mandata. Naquela mesma tarde, depois de Douglas Garcia questionar suas viagens a quilombos, o deputado Carlos Giannazi, do PSOl, subiu a tribuna: “A presença da deputada Erica nessa Assembleia é um fato histórico”, disse. Perguntada quanto a se concordava com a avaliação, a deputada vacilou. “Acho que é muito positivo para a Alesp ter alguém como eu aqui”, disse por fim, calculando as palavras. “Porque enriquece, multiplica. Traz ares de diversidade, ainda que de forma ínfima”.

Malunguinho nasceu na periferia do Recife em uma família que tinha por hábito discutir política em casa: “Minha mãe é afilhada de um dos líderes das Ligas Campesinas”, contou. “E minha avó fez vigília na porta da cadeia quando o Miguel Arraes foi preso”.  Então governador de Pernambuco, e vinculado a setores progressistas, Arraes foi deposto e preso pelo golpe militar de 1964.

Talvez por influência familiar, a política institucional nunca lhe pareceu um universo distante: “Eu sempre valorizei esse espaço. Porque entendia que em assembleias como essa eram tomadas decisões capazes de influenciar a vida de muitos”.

Mesmo assim, por anos, preferiu fazer política por outras vias. Malunguinho cursou pedagogia em São Paulo e, pouco depois, engatou num mestrado sobre história da arte. Deu aulas para adultos, adolescentes e crianças. Até sentir que precisava pensar a educação para além da sala de aula. Foi dessa inquietação que nasceu a Aparelha Luzia. O centro cultural abriu as portas em 2016, no bairro de Campos Elísios, região central de São Paulo. Recebe shows, espetáculos de dança e rodas de conversa. Segundo Malunguinho, é um “espaço de resistência e sociabilidade”. Um quilombo urbano, por onde pessoas negras podem circular sem se preocupar com as restrições impostas pelo racismo.

Já a decisão de disputar um cargo eletivo viria somente em 2018, dois meses antes da data limite para o anúncio das candidaturas. Nas palavras da deputada, a decisão soa tão natural que parece prosaica: “Às vésperas da eleição, eu me peguei pensando em quem nós poderíamos apoiar. Quem poderia representar nossas pautas nesse espaço”, disse. “Cheguei à conclusão de que eu poderia ser essa pessoa”.

Malunguinho se elegeu com 55 mil votos e uma campanha modesta. Recebeu de seu partido, o PSOL, R$ 5 mil para gastos de campanha. O grosso das despesas, pouco mais de R$20 mil, foi coberto através de financiamento coletivo. “A verdade é que eu nunca vi esse espaço como um lugar distante” disse ela, para justificar a naturalidade com que encara a própria eleição. “Porque esse é um lugar ao qual  população deveria ter acesso. Não à toa, eu digo que vim aqui fazer uma reintegração de posse”.

Malunguinho marcou o início desse processo de reintegração com um cortejo, realizado diante da Alesp no dia em que os deputados foram empossados. Vestida de branco, subiu a rampa da Assembleia acompanha pelo bloco Ilu Inã. O evento se inspirava nas cerimônias de coroação das mães de santo: “Eu não inovei. Ninguém aqui está inventando a roda”, desconversou, quando elogiada.  Malunguinho disse que a movimentação não rendeu comentários de seus pares. O evento comunicava, já de saída, sua maneira particular de pensar e fazer política, que mescla arte aos ritos institucionais: “Arte e política são coisas indissociáveis. Nas sociedades tradicionais, elas nunca foram encaradas como categorias estanque”, explicou.

Sua chegada ao parlamento coincidiu com a passagem de uma onda conservadora que, na Alesp e fora dela, varreu a política brasileira. Com seu costumeiro senso de humor, a deputada faz troça do quadro geral: “Essa onda não veio do nada. Essa onda está num mar…perdão mar, por falar assim de você. Mas falaram de onda, então eu fui obrigada”. O mar, no caso, é metáfora para a sociedade brasileira — de desiguladade acachapante e estruturalmente racista — que deu suporte à ascenção da extrema direita. Logo, Malunguinho se explicou: “Eu não vou ser leviana e ignorar que as violações aos pactos de civilidade se exarcebaram. Mas essa onda sempre esteve aí. Pergunta para as trans e para as travestis. Pergunta para o povo preto.”

O momento desafia justamente as pautas que Malunguinho elegeu como prioritárias. Além das discussões caras à população LGBTI+, ela tem projetos voltados a pessoas em situação de rua, de valorização de comunidades tradicionais e de combate ao racismo. Para ela, falta à política brasileira tratar de gênero e raça com seriedade. A crítica vale, inclusive para as esquerdas: “De verdade, eu não acho que exista uma esquerda no Brasil”, afirmou. “Uma esquerda de verdade precisa considerar gênero e raça como fundamentos. E não se trata de falar sobre mulheres, sobre pessoas negras, sobre pessoas trans. É preciso que essas pessoas participem dos processos de decisão”. E o que falta para isso acontecer? “Eu não sei. Vergonha?”, respondeu, entre séria e risonha.

Para ela, mais que a clássica divisão direita-esquerda, o que se impõe hoje é uma espécie de falta de civilidade extrema. A onda conservadora, no entanto, não a assusta: “Eu cresci tendo de negociar minha existência”, explica. A experiência, como o humor e a arte, carrega consigo para a política institucional. Enquanto isso, ignorando a onda, Malunguinho trabalha de olho no mar: “Porque a onda passa. É o mar que a gente precisa mudar”.

 

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