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Abdias Nascimento: quem foi o artista e ativista do movimento negro

Maria Edhuarda Gonzaga *

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Foto de topo: Abdias Nascimento e Nelson Mandela (Divulgação Ipeafro)

Intelectual, poeta, dramaturgo e artista visual. Abdias Nascimento acumula títulos e profissões que, apesar de diferentes em essência, perseguiam o mesmo objetivo: a emancipação da população negra. Ativista pan-africanista – teoria política que visa a união dos povos africanos e seus descendentes – e pelos direitos humanos, também foi o primeiro político brasileiro a propor uma lei de ações afirmativas para os negros.

“É um instrumento (…) utilizado para promover a igualdade de oportunidades no emprego, na educação, no acesso à moradia e no mundo dos negócios. Por meio deles, o Estado, a universidade e as empresas podem não apenas remediar a discriminação passada e presente, mas também prevenir a discriminação futura, num esforço para se chegar a uma sociedade (…) aberta à participação igualitária de todos os cidadãos”, explicou em discurso no Senado em 13 de maio de 1998.

>>Leia também: Peça de Abdias Nascimento chega ao Brasil 30 anos depois de publicada nos EUA

Abdias  nasceu no dia 14 de março de 1914,na cidade de Franca, interior de São Paulo. Neto de escravizados e filho de Dona Josina e Seu Bem-Bem, uma doceira e um sapateiro, cresceu imerso na realidade ainda de subalternidade enfrentada pelos negros no Brasil do século XX. 

Abdias contava que sua trajetória de combate ao racismo começou ainda em casa. Certa vez, o menino presenciou a mãe irritar-se ao ver uma mulher branca agredir um menino negro. A intervenção de Dona Josina na situação foi seu primeiro exemplo de solidariedade pan-africanista e “marcou o começo da minha consciência sobre a realidade da situação do negro no Brasil”, escreveu Abdias no livro Memórias do Exílio, publicado em 1976. Mais tarde, recebeu uma oferta de emprego como guarda-livros em uma fazenda. No seu primeiro dia, o condutor da carroça que o levaria até o trabalho sugeriu que viajasse na parte traseira, mesmo lugar onde eram transportadas as cargas e os animais. Rejeitou o trabalho, saiu de Franca e alistou-se no exército, à procura de novas possibilidades na capital paulista. 

Assim que iniciou sua vida na cidade de São Paulo, foi preso duas vezes: uma durante seu período no Exército, por resistir às práticas racistas da instituição, e outra após fazer críticas à política de governo de Getúlio Vargas no Estado Novo. Em 1940, dois anos após sair da prisão, fez diversas viagens pela América Latina e viu de perto a discriminação nas artes cênicas. Na época, era comum que pessoas brancas pintassem seus rostos com tinta preta para interpretar pessoas negras – prática discriminatória nomeada hoje como blackface

Ao voltar para o Brasil, foi preso novamente por enfrentar o racismo na capital paulista. No presídio do Carandiru, fundou o Teatro do Sentenciado e o Nosso Jornal, iniciativas que estimulavam os privados de liberdade a escrever e pensar de forma criativa e artística. Também escreveu seu primeiro livro, “Submundo: cadernos de um penitenciário”, no qual relata suas memórias e experiências no cárcere em conjunto com escritos e reflexões coletadas dos sentenciados. Por meio dele, consagrou-se como um pensador do abolicionismo. 

A atriz Léa Garcia, em encenação do TEN (Divulgação/ Ipeafro)

Em 1944, um ano após sua absolvição, fundou o Teatro Experimental do Negro (TEN) em conjunto com diversos intelectuais negros. Ruth Souza, Léa Garcia e Aguinaldo Camargo foram alguns dos artistas que fizeram parte da realização, que pretendia representar a população preta em um lugar de dignidade e protagonismo nas artes cênicas.

Em 1945, o TEN estreou no Theatro Municipal do Rio de Janeiro. O espaço recebeu, pela primeira vez, um espetáculo composto por pessoas negras que, até ali, nunca tinha subido ao palco. A peça encenada foi “O Imperador Jones”, do norte-americano Eugene O’Neill, que trazia um homem negro como protagonista e abordava questões como a segregação estadunidense e governos ditatoriais. 

O Teatro Experimental do Negro também foi reponsável pela criação da Associação das Empregadas Domésticas e o Conselho Nacional de Mulheres Negras. Esses espaços foram responsáveis por produzir questionamentos e diálogos sobre a condição da mulher negra e pobre na sociedade brasileira. Além disso, havia concursos que valorizavam a beleza e a arte negra, como o “Boneca de Pixe” e a Semana do Negro. 

Abdias em cena da peça O Imperador Jones (Divulgação/ Ipeafro)

Em 1948, Abdias Nascimento fundou o Jornal Quilombo, projeto jornalístico que tinha como objetivo retratar as múltiplas faces da população negra. A arte, a cultura, a política e a educação são algumas das editorias abordadas a partir desse viés de valorização e protagonismo. As mulheres negras, em especial, tinham suas questões tratadas na coluna “Fala Mulher”, escrita pela feminista antirracista Maria Nascimento, que dava especial destaque aos direitos das empregadas domésticas. 

Dois anos depois, o TEN percebeu a necessidade de debater de forma mais profunda a “estética da negritude”, ou seja, entender como estava a visibilidade dos artistas negros e como a cultura preta era representada nos seus projetos. Dessa maneira, a organização realizou o 1o Congresso do Negro Brasileiro, do qual saiu a ideia de fundar um museu que valorizasse essa produção artística. O Teatro Experimental do Negro tomou para si a reponsabilidade de criar o Museu de Arte Negra (MAN)  que, apesar de não possuir espaço físico único, foi construído por meio de obras – pinturas, desenhos, gravuras, fotografias, esculturas – doadas por artistas em diálogo com o ativismo do TEN. 

Após a primeira exposição física do MAN, em 1968, no Museu da Imagem e do Som do Rio de Janeiro, na qual Abdias foi curador, ele viajou para os EUA com o intuito de traçar paralelos entre o movimento de direitos civis da população negra norte-americana e no Brasil. Neste mesmo período, o governo brasileiro vivia sob um regime de ditadura militar. Em dezembro do mesmo ano, foi promulgado o Ato Institucional n. 5, que iniciou a perseguição de opositores da ditadura militar. 

Como Abdias era filiado ao Partido Trabalhista Brasileiro (PTB), principal opositor político ao governo autoritário que vigorava, o ativista ficou exilado por 13 anos, entre os Estados Unidos e a Nigéria. Durante o exílio, começou a pintar obras que faziam referências às religiões de matriz africana e à diáspora africana, marcada por intensa resistência à escravidão e ao racismo. Além disso, deu aulas em universidades de ambos os países e manteve contato com a resistência política no Brasil. 

Em 1981, voltou para o Brasil e fundou o Instituto de Pesquisas e Estudos Afro-Brasileiros (IPEAFRO), organização que hoje é responsável pela preservação e disseminação do seu acervo. Dois anos depois, tornou-se deputado nas primeiras eleições pós abertura democrática e introduziu o debate sobre ações afirmativas e leis antidiscriminatórias na Câmara dos Deputados. 

Esteve envolvido na criação da Fundação Cultural Palmares, órgão federal que promove a afro-brasilidade, e na elaboração do Dia Nacional da Consciência Negra. Em 1991, tornou-se senador e dedicou seu mandato à luta pelos direitos da população negra brasileira. Na sua jornada política também foi titular da Secretaria de Defesa e Promoção das Populações Afro-Brasileiras e da Secretaria de Direitos Humanos e Cidadania, ambas parte do governo do estado do Rio de Janeiro. 

A luta parlamentar caminhou lado a lado com os outros campos do seu ativismo: editou duas revistas antirracistas e escreveu obras que relatam diversas perspectivas da população negra. Dentre elas, se destacam Sortilégio (Mistério Negro), peça teatral que trata das relações interraciais e da cultura preta, e O Genocídio do negro brasileiro (Processo de um Racismo Mascarado), ensaio que analisa a condição social do negro no Brasil opondo-se à teoria da democracia racial – crença de que o racismo foi superado no país graças ao processo de miscigenação. 

Em 2006, Abdias tornou-se um dos instituidores do Fundo Brasil de Direitos Humanos, mesma organização que mantém a Brasil de Direitos. 

Em 2010, foi indicado ao Prêmio Nobel da Paz. No ano seguinte faleceu, em 23 de maio de 2011, aos 97 anos. 

O reconhecimento de que o racismo ainda estava presente nas relações sociais mesmo após o fim da escravidão desafiou o senso comum da época em que viveu. A atualidade da sua extensa obra escrita, unida ao ativismo que marcou sua trajetória, faz dele um dos pensadores mais importantes do Brasil.

                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                            “Mais do que nunca, nós, negros e negras, precisamos de unidade. São muitos os que nos combatem. Esses ataques partem de todas as classes, embasados sempre num preconceito retrógrado, absurdo e criminoso. Em nome dele, milhares de irmãs e irmãos negros foram mortos barbaramente. Em nome desse racismo maldito, somos relegados a segundo plano na sociedade”, terminou em discurso no Senado em 13 de maio de 1998.

*Estagiária sob supervisão de Rafael Ciscati

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