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Angela RoRo: relembre a entrevista histórica da cantora ao Chanacomchana

Morta aos 75 anos, Angela Roro se tornou símbolo LGBTQIA+ no país ao falar abertamente sobre sexualidade e política em uma época em que poucos artistas se arriscavam

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Agência Diadorim

11 min

Foto: Bob Wolfenson/ Divulgação

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A cantora Angela RoRo, que morreu nessa segunda-feira (8 set.), aos 75 anos, marcou a história da música brasileira por sua voz singular e letras de sucesso. Mas foi também um símbolo LGBTQIA+ no país ao falar abertamente sobre sexualidade e política em uma época em que poucos artistas se arriscavam.

Para lembrar a trajetória de Angela RoRo, Diadorim republicou — e, seguindo a iniciativa da agência, Brasil de Direitos reproduz aqui — a primeira entrevista que concedeu ao jornal lésbico-feminista Chanacomchana, em 1981. Na estreia da publicação, a cantora falou sobre desejo, feminismo e música, deixando registrado o seu tom direto e provocador.

O texto original, vale dizer, carrega marcas da época em que foi escrito. O Chanacomchana usa o termo “homossexualismo”, por exemplo, em lugar de “homossexualidade”. O sufixo “ismo” é comumente utilizado para designar enfermidades: até 1973, a homossexualidade era classificada como um transtorno mental pelo DSM, uma espécie de bíblia da psiquiatria. Na versão que publicamos abaixo, Brasil de Direitos substituiu a palavra já em desuso, de modo a adequar a entrevista aos nossos tempos.

 

‘Não me envolvam; eu me envolvo’

A homossexualidade ainda é um assunto obscuro, digo maldito, para a maioria das pessoas. Ele encontra-se situado no cruzamento do pecado com o preconceito.

Talvez por isto, poucos artistas se predisponham a falar sobre suas preferências sexuais. Equivaleria a colocarem-se sob o jugo inflacionário da opinião pública. Este parêntese é um desabafo pela nossa sociedade que possui uma absurda e arraigada tradição moralista, que propicia um “certo capote” às ações brutais e arbitrárias da polícia, vide operações do super-Richetti em São Paulo.

Mas Angela Maria Diniz Gonsalvez, vulgo Angela RoRo, é exceção. No bate-papo informal que constituiu esta entrevista, Angela fala com espontaneidade. Afinal, ninguém estava na confortável posição de crítico. De um lado, Angela, de branco (era sexta-feira), decote e sorriso; de outro, Marisa, Maria Serrath, Silvana, Cris e Conceição — lésbicas então atuantes no GALF (Grupo de Ação Lésbica-Feminista), para as íntimas L.F.

Para esta cantora-compositora-pianista, o sexo é uma coisa naturalíssima. Qualquer um: o praticado entre duas mulheres, entre uma mulher e um homem, um homem com outro homem e todas as possíveis variações.

Esta postura de Angela RoRo, nada discriminatória, é defendida de uma cidadela construída ao longo de uma vida com base em família de classe média-alta, muita porralouquice cultivada nos bares no baixo Leblon e um piano sempre aberto às últimas inconsequências da música e da vida.

GRUPO – Com tendências mais homossexuais que heterossexuais. Esse fato não é uma ameaça constante à sua carreira?
ANGELA –
 Estipulei desde o início do meu trabalho que, se haveria alguém abrindo concessão, seria eu, por estar trabalhando. A música é minha coisa mais sagrada, deixaria de ser se eu me violasse. Se alguém não quer, não gosta, fim. Não compre o disco e não vá ao show.

GRUPO – Nos seus shows observamos uma alternativa na relação artista-público. Há toda uma práxis contra a repressão. Todos se manifestam, existe um espaço aberto. Há inclusive muitas colocações suas literalmente lésbicas…
ANGELA –
 Eu, honestamente, não falo aquelas loucuras no show intencionalmente (rindo). Sai porque sai. Quando, em maio de 79, frente a 350 pessoas, a maioria amigos, eu subi ao palco do Teatro Ipanema para dar início a um trabalho, meus pés, minhas mãos, meu corpo todo tremia. Eu estava tomada de emoção, muito comovida. O coração aqui (na boca). Não dava mais. Aí eu gritei “CORRO!”… e descobri que conversar ajudava a descontrair. Quando dei por mim, estava no meio de uma história minha. Uma certa hora eu ia usar o termo “a pessoa que eu amo”, mas lembrei que era um termo tão entendido, tão gay. Curti com a brincadeira dizendo no lugar “a mulher que eu amo” ou “uma pessoa que eu amo”.

GRUPO – O primeiro disco saiu cheirando a amor muito romântico. E o segundo?
ANGELA –
 Ah… o segundo disco cheira tanta coisa (risos). Neste disco gravei coisas dos outros e minhas. Sabe, há um ano que não componho. Isto não me apavora, mas me preocupa (risos). Eu sento no piano e não sai nada. Acho normal. Não posso ficar me forçando. Quando estou com vontade de tocar, lá pelas 4 da manhã, nunca acho um piano. Se acho, vou dar uma canja, não vou compor num bar, né?

Imagem propriedade da Brasil de DireitosImagem propriedade da Brasil de Direitos

GRUPO – Como você situa Angela RoRo dentro do panorama da MPB? Ocupando uma ampla escala que vai de Dolores Duran à Rita Lee?
ANGELA –
 Eu sou aquela que vai do B ao B — do bolero ao blues. Dos 8 aos 15 anos estudei piano erudito, até no jeito que eu toco rock o erudito está lá. Arpejinhos, staccatos, coisinhas ridículas que só poderiam vir de uma formação erudita. Agora… eu faço de tudo, de tudo que posso (risos).

GRUPO – Angela, você vive brindando seu público com tiradas tais como: “As pessoas viviam dizendo que eu era tão espontânea, que resolvi ganhar dinheiro com a minha espontaneidade”. A profissionalização demarca o fim da canjeira e o início da pilotonisa. O humor e a agressão resultaram na fórmula certa do sucesso?
ANGELA –
  Não me considero agressiva. O que eu faço é reclamar o tempo todo. Tô reivindicando o tempo todo. O negócio é a gente dizer “eu quero” e “eu tenho”, mesmo não tendo. Expondo a verdade com coragem, acaba-se tendo. Eu sou uma pessoa com uma faceta de humor predominante, sempre tive tendência à palhaçada. Como artista, aproveito este dom. Não sigo esta fórmula só porque dá certo. É também porque está pintando, entende? Você não pode dar um soco na cara das pessoas. Você dá o soco, mas primeiro faz o cara rir, se distrair. Quando eu dou uma rasteira nas pessoas, cuido para que eles cheguem do teto ao chão rindo.

GRUPO – Angela, defina seu público. E a minoria? E a maioria?
ANGELA –
 (Rindo) Primeiro pensou-se que eu seria cantora de uma elite. Mas 1980 transformou tudo, de repente meu público era a massa (ri em tom “Ro”, gravíssimo). Há predominância de jovens, numa faixa etária que vai dos 17 aos 30 anos. Gente ótima, de primeira e da segunda mocidade!

GRUPO – O Telmo Martinho, crítico de arte e costumes aqui de São Paulo, elegeu você a “inventora do sapateado”. Você coloca-se como lésbica publicamente?
ANGELA –
 Acho o título engraçado, ousado até. Mas perpetua-se uma rixa, um sectarismo. Os heteros, os homos… entende? Por que isto não existe? Todos são dúbios, todos são anfíbios. Se eles não sacam isto, o problema é deles. O negócio é a pessoa em si. A não ser que você esteja de acordo com uma ideia que eu tinha na adolescência, e da qual tive de abdicar, porque era inviável na prática: exterminar as pessoas que eu não gostava (risos). Sinceramente, não sei porque se situar — e as outras pessoas — como lésbicas. A ilha de Lesbos não está tão frequentada assim. Digamos que elas são paulistas, mineiras, cariocas. OK?

GRUPO – A palavra choca?
ANGELA – 
Não, a palavra não choca. Acho até muito bonita, e a ilha mais ainda. Creio que vocês estão usando um rótulo que antes foi dado.

GRUPO – Como você vê o Movimento Lésbico?
ANGELA –
 Eu nem sabia que existia um movimento lésbico. Desejo boa sorte. É estranho, mas é válido. Estranho porque o que eu faço na cama, o que eu gosto de ter como prazer sexual, é por demais íntimo (eu jamais me dedicaria ao sexo grupal porque perde a intimidade) — não dá para ser usado a título de movimento. O que eu faço na cama é o que eu gosto. Se eu vou para a cama com rapazes, com moças, com gatos ou cachorros, cabe apenas a mim e à pessoa que me acompanha nesta jornada de delícias. Mas, se existe um foco de opressão e existe uma organização que pode ir lá e tentar acabar com ele, eu acho fantástico. É um meio de lutar contra as coisas. No entanto, mais importante que lutar contra as coisas ruins é lutar pelas boas. Cada um deve fazer sua revolução íntima. Sei que realmente há discriminação. Não só a mulher homossexual é discriminada: a mulher, de uma forma geral, é discriminada há tanto tempo, de tantas formas…

GRUPO – Nós, mulheres homossexuais, somos duplamente discriminadas: enquanto mulher e enquanto lésbica.
ANGELA –
 Um movimento, qualquer que seja, de evolução, de esclarecimento tem que partir do indivíduo, mas você pode abranger a coletividade. É o que eu faço no show, cutuco aqui, cutuco lá. Eu subo num palco não é de gaiata, não é só pra ganhar dinheiro e cantar como louca. Cutuco com o inevitável, que não tem classe social que separe, que não tem faixa etária que discrimine, cutuco com a emoção. todos têm emoção — o homo, o hetero, o bi, o tri, o quadri, o pobre, o rico. O problema é que o mundo está todo cagado.

Revolução individual

GRUPO  — O feminismo procura dar ao mundo uma face mais feminina, propondo a quebra de qualquer relação de poder — oprimido/opressor. Como você vê a luta feminista?
ANGELA  — 
Tudo é uma questão de união. O ser humano está na pior. O homem não está bem, não. Ele não está muito melhor que a mulher.

GRUPO  — Ele também é explorado?
ANGELA —
 Pois é, o homem está cada vez mais perdido, porque ele sacou a responsabilidade dele ser o que ele nunca quis ser, mas é. A culpa é do machismo exacerbado, do fascismo, do porco chauvinismo, mas também é da mãe do porco. A mulher incorre no erro da formação dos filhos. O mundo está uma merda. No caso do homem e da mulher, dos heterossexuais, que dizem — mas ninguém prova — que são maioria: família, né? Os dois deviam se unir mais, do que só no momento da procriação. Não sou contra o homem, nem exageradamente a favor da mulher. Não sou contra nem a favor… O mal todo está na adoração do falo, que é a pior besteira. O dedo podia ser adorado, o nariz… Como não dá pra cortar todos os falos existentes (ceifar o mal culturalmente), fico aqui acreditando na redescoberta da dignidade, da revolução individual. Não adianta pegar um bando de gente e doutrinar.

GRUPO – Como o assunto para nós é relevante, vamos voltar à “vaca fria”. Você declarou ao “Jornal de Ipanema” que perdeu a virgindade através do Espírito Santo, auxiliado pelos dedos de uma amiga. Detalhe esta história para enriquecer nosso proselitismo sexual.
ANGELA —
 O “Jornal de Ipanema”… Foi um equívoco. Não tive nem saúde para anarquizar com ele. Foi uma das poucas vezes em que fui anarquizada. O dono do jornal, que comandava a entrevista, entre uma birita e outra, me cantou muito. Eu não fui grosseira, até brinquei com ele. Mas o cara sacou que eu não ia dar pra ele e resolveu me achincalhar naquele jornal. Ele devia ter algum trauma com alguma mulher que pisou forte na vida dele. O cara me perguntou umas oito vezes como eu perdi a virgindade. Quando “torrou”, eu disse que foi obra do Espírito Santo. Foi uma das raras experiências jornalísticas ingratas. Fiquei aborrecida porque 65% da bosta daquela entrevista eu não falei.

GRUPO –  Angela, e daqui pra frente?
ANGELA –
 Continuar (risos).

Angela RoRo despede-se com seu brilho, com seu beijo. Depois de dez anos de não-carreira, Angela RoRo acontece. Com humor, com sabor, com o amor de quem se perdeu e se encontrou.

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