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Baseado em fatos reais, podcast narra histórias de mulheres que vivem com HIV

Rafael Ciscati

6 min

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foto de topo: a equipe do MNCP (Divulgação)

Foi no começo dos anos 1990 que Regina recebeu a notícia: ela tinha contraído o vírus HIV. Moça simples e tímida, Regina tivera, até ali, dois namorados. O último deles a tratava com violência — durante as relações sexuais, tirava o preservativo sem que ela soubesse, uma forma de estupro. O relacionamento terminou e, nove anos depois, Regina adoeceu. Foi quando começou seu périplo pelo sistema de saúde. “O médico nem olhou para minha cara”, conta, ao lembrar do dia em que recebeu o diagnóstico. “Da primeira vez que passei por ele, parecia que estava na delegacia sendo interrogada. Ele me perguntou se usava drogas, se tinha muitos parceiros”. No prontuário, o médico atestou que Regina era “promíscua”. 

Regina é uma personagem de ficção. A história que ela conta, no entanto, é real. Uma das 23 enviadas por mulheres do Brasil todo para o Movimento Nacional das Cidadãs Posithivas (MNCP), e que o grupo reconta ao longo dos seis episódios na radionovela Posithivas na Prevenção

Disponível no Spotify, a novela acompanha os dramas e dúvidas de um grupo de amigas que vivem com HIV. A cada capítulo, elas relembram suas histórias pessoais. Aproveitam para compartilhar informações acerca de temas como prevenção, combate ao estigma, acesso a tratamento e transmissão vertical do vírus — aquela que acontece da mãe para o bebê durante a gestação, parto ou a amamentação. 

Criado ainda nos anos 1990, o MNCP trabalha há anos com ações que tentam influenciar o desenho de políticas públicas e informar a população — em especial, a de mulheres vivendo com HIV— sobre seus direitos. Mas gosta de fazer isso sem sisudez. “Tratamos de temas sérios de maneira lúdica. E que permita alguma interação com as pessoas”, conta Silvia Aloia, integrante do MNCP e uma das coordenadoras da radionovela. 
   
As militantes queriam criar um produto de comunicação com potencial para chegar ao maior número possível de pessoas. Por isso, a linguagem do rádio, diz Silvia, pareceu ideal. Primeiro, porque é de fácil consumo. “Há localidades, no interior do Brasil, onde toda a comunicação com a população é feita por auto-falante”, lembra Silvia. “Já visitei uma cidade onde os horários de consulta da Unidade Básica de Saúde eram anunciados assim”. Além disso, o grupo já se aventurara, tempos antes, na produção de podcasts. Eram programas de entrevistas, em que militantes conversavam com especialistas em saúde. Na empreitada mais recente, a novidade seria o mergulho na ficção.

De saída, a ideia era fazer uma radionovela caseira. “Mas acabamos tocando o coração de alguns profissionais”, brinca Silvia. Os roteiros ficaram a cargo da escritora Etel Frota, e o músico Felipe Radicetti compôs as trilhas para os episódios. A seleção das atrizes foi acirrada: 80 pessoas se candidataram, das quais foram escolhidas cinco. 

Durante a concepção do projeto, uma das inspirações do grupo foi o Teatro Fórum. Proposta pelo dramaturgo Augusto Boal, essa modalidade de teatro convida a audiência a participar da peça, compartilhando experiências reais que acabam dramatizadas. Seguindo esse espírito, o MNCP convidou mulheres a dividir suas histórias anonimamente. Elas serviram de ponto de partida para as personagens da trama. 

Os casos relatam as vivências de mulheres com idades e origens diversas. E, conforme a história é contada, ajudam a traçar também um retrato de como o combate à epidemia de HIV e aids avançou com os anos. 

O caso de Regina, que abre essa matéria, remete a um momento em que o diagnóstico de HIV positivo era, muitas vezes, interpretado como uma sentença de morte. O vírus era associado a pessoas homossexuais. Quem adoecia recebia o rótulo de “promíscuo”. “Mas já são 43 anos de epidemia. De lá para cá, muita coisa mudou”, lembra Silvia. “Lá atrás, quando morreu Cazuza e sabia-se muito pouco sobre o vírus, o preconceito era muito grande”.

Desde então, novos medicamentos e estratégias de prevenção foram desenvolvidos. Em 1996, o Brasil virou referência em todo o mundo ao incorporar antirretrovirais — os medicamentos usados para controle da carga viral — ao Sistema Único de Saúde (SUS). A medida permitiu a universalização do tratamento e levou à queda na mortalidade por aids (a doença provocada pelo vírus HIV). Organizações, como a própria MNCP, atuaram para combater preconceitos. 

Na novela, essa evolução acaba personificada na personagem Graça, uma mulher de 26 anos. Já no segundo episódio, ela conta que nasceu com o HIV, transmitido pela mãe que não sabia estar doente. Com acesso ao tratamento adequado, Graça vivia saudável. 

Nem tudo é perfeito, claro. Silvia lembra que a desinformação e o preconceito contra pessoas que vivem com HIV ainda existe. “Nos últimos anos, inclusive, muitos preconceituosos saíram do armário”. Além disso, as opções de tratamento avançaram, mas nem sempre a conduta dos profissionais de saúde evoluiu na mesma medida. Para garantir adesão ao tratamento, Silvia explica que o médico precisa estar atento ao contexto de vida e às necessidades do paciente. “Não adianta simplesmente impor soluções: dizer que a pessoa vai ter de tomar tal remédio em tal  horário”, conta. “Mas, muitas vezes, a relação entre médico e paciente — não só no caso do HIV — é vertical. Não há diálogo”. 

Contra males assim, a radionovela ensina que o melhor remédio é a boa informação. Uma das personagens conta andar, para cima e para baixo, com materiais do ministério da Saúde detalhando as estratégias de cuidado integral às pessoas com HIV. “Ela é o terror dos médicos”, brinca uma das amigas. Longe disso: é uma pessoa ciente de seus direitos. 

 

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