Biografia resgata papel político de Mãe Hilda Jitolu, matriarca do Ilê Aiyê
Ialorixá trabalhou para educar crianças e participou de movimento que consolidou o dia da Consciência Negra. Livro escrito por neta retoma sua trajetória
Rafael Ciscati
8 min
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A mãe de santo Hilda Jitolu tinha seus 50 anos quando seus filhos (biológicos, no caso), apareceram em casa com uma proposta. Queriam criar um bloco de carnaval para pessoas negras. Na Salvador de 1974, a ideia tinha um quê de revolução: cidade com maior número de afrodescendentes do país, Salvador impedia que pessoas negras desfilassem nos grandes blocos de carnaval. A pessoa interessada em cair na folia tinha antes de enviar uma ficha de inscrição para os organizadores do cortejo, acompanhada por foto. A proibição não era explícita, mas gente negra não passava no crivo dos avaliadores.
A ideia de criar um bloco afro partiu de Antônio Carlos do Santos Vovô, filho de mãe Hilda, e do amigo Apolônio Souza de Jesus. Influenciados pelo movimento black power americano, que acompanhavam à distància,os rapazes queriam batizar o novo bloco como Poder Negro. Mas eram anos de ditadura militar. Alguém alertou que, caso a polícia desse de cara com um grupo de jovens negros falando em poder, acharia tratar-se de protesto, e eles corriam o risco de ir presos. “Se eles forem presos, eu vou também. Porque também vou desfilar”, sentenciou Mãe Hilda, frente ao vaticínio. Ela apenas pediu que mudassem o nome: em lugar de Poder Negro, nascia o Ilê Aye, primeiro bloco afro do Brasil.
Quem narra essa história é a jornalista Valéria Lima, neta de Mãe Hilda, no recém-lançado Mãe da Liberdade – a trajetória da Ialorixá Hilda Jitolu, matriarca do Ile Aiyê. O livro resgata a história da mãe de santo e suas contribuições para o movimento negro brasileiro. Nascida em uma família pobre de Salvador em 1923, neta de escravizados, Hilda dos Reis Dias jamais estudou — mas criou, no próprio terreiro, uma escola que educa meninas e meninos há mais de 30 anos. À frente do Ilê Aiyê,cujos cortejos ela abria todo ano, contribuiu para formar (e informar) o imaginário brasileiro acerca das culturas africanas. Num momento em que o Movimento Negro ganhava novo fôlego, a ialorixá (o termo designa a sacerdotiza no candomblé, religião de matriz africana) soube unir política e cultura, para fazer a ponte entre correntes da militância (de um lado artítisca; de outro, política) que resistiam ao diálogo.
Por um tempo, essas contribuições ficaram esquecidas, diz Valéria. Inclusive entre membros da própria família.
Valéria conta que cresceu no terreiro Acé Jitolu, criado pela avó em 1952 no na própria casa, no bairro do Curuzu, em Salvador. A avó Hilda, nas lembranças dela, era rígida, terna, e vaidosa. Valéria, que foi trancista por muito tempo, era quem cuidava dos cabelos da matriarca. “Eu era a única, além de minha mãe, que penteava os cabelos da minha avó”.
Valéria chegou a entrevistá-la certa vez, enquanto preparava seu trabalho de conclusão do curso de jornalismo, e já acalentava o projeto de escrever sua biografia. Durante uma aula do mestrado, anos depois, percebeu que desconhecia aspectos da vida da avó, morta em 2009.
Um grupo de colegas apresentava um seminário que, a certa altura, falava do dramaturgo, senador e intelectual Abdias Nascimento. Acompanhado por figuras da militância negra, Abdias fez peregrinações à Serra da Barriga, em Alagoas, na década de 1980. No século XVII, a região abrigara o Quilombo de Palmares, o maior do período colonial. As expedições resultaram no tombamento do sítio de Palmares e ajudaram a consolidar o 20 novembro, data da morte de Zumbi, como o Dia da Consciência Negra.
Nas fotos exibidas pelos colegas, apareciam Abdias, a intelectual Lélia Gonzales e, ao lado de ambos, Mãe Hilda. Foi uma surpresa para a estudante. “Conheci minha avó já idosa, quando ela era mais reservada e reclusa”, explica a autora. “Até aquele momento, era mais evidente para mim a importância cultural do Ilê Aiyê. Pensava pouco na importância de minha avó. E não conhecia essa relação com Abdias”. A surpresa inicial virou pesquisa de mestrado, agora publicada em livro. A obra está disponível online, para download gratuito.
Ao conversar com amigos e parentes, pesquisar em jornais antigos e organizar documentos de um vasto acervo familiar – de fotos de família a recibos de pagamento – Valéria diz ter descoberto uma mulher arrojada. “Minha avó praticava o feminismo negro antes mesmo de o termo existir”, conta. “E entendia o antirracismo como uma espécie de missão”.
Foi essa a motivação, aponta Valéria, que levou Mãe Hilda a apoiar a empreitada dos filhos na criação do bloco de carnaval. Como previsto, o cortejo foi perseguido pela polícia, e foi alvo de resenhas raivosas na imprensa baiana (o jornal A Tarde escreveu que o Ilê Aiyê era, veja só, “racista”). “No meio da ditadura, outras mães teriam aconselhado os filhos a desistir da ideia, para protegê-los”, aponta Valéria. “Mãe Hilda foi para a rua com os seus”.
Peregrinação a Palmares
No livro, Valéria conta que o convite para subir a Serra da Barriga partiu de Abdias. Na época, o movimento negro brasileiro questionava o mito da democracia racial – a ideia, muito propagada durante a ditadura, de que não havia racismo no Brasil. Zumbi surgia, entre os ativistas, como símbolo da resistência negra contra a escravidão e havia o desejo de transformar em parque o território do antigo quilombo de Palmares. “Não dava para chegar a um território sagrado como aquele sem pedir licença”, diz Valéria. Por isso, a partir de 1981, Mãe Hilda foi chamada para executar os rituais religiosos que abririam os caminhos da expedição. “Fui porque o homem era de Santo, zumbi era filho de Ogum”, contou ela anos depois. O caminho era difícil e acidentado. Mãe Hilda subiu a Serra da Barriga carregada por um burrinho. “Mas fui com muito prazer, debaixo daquelas palmeiras. Levei o que tinha que levar para Babá Zumbi dos Palmares”.
A biografia também traz à tona aspectos curiosos da vida da mãe de santo. Conhecida por sua atuação religiosa, a menina Hilda resistiu à ideia de ser iniciada no candomblé. Nascida na Quinta das Beatas, filha de uma doceira e um estivador, mãe Hilda foi uma jovem festeira e vaidosa — mas muito doente. Era comum que desmaiasse na rua. Certa vez, ouviu de um médico que seu problema não era físico: ela precisava procurar um “centro”. A jovem de 19 anos não queria: a iniciação no candomblé é longa e árdua. Envolve um período de reclusão. As iniciadas raspam o cabelo e, uma vez integradas ao terreiro, assumem obrigações junto à comunidade. Um tanto a contragosto, e por motivos de saúde, Hilda dos Reis Dias foi iniciada e rebatizada como Jitolu – “aquela que vem com a força da terra”. Ela abriria seu próprio terreiro, o Acé Jitolu, anos depois, na ladeira do Curuzu.
Ali, Mãe Hilda construiu aquilo que Valéria considera seu maior legado: a Escola Mãe Hilda Jitolu. Criada em 1988, a instituição funcionou no barracão do terreiro até 2004, quando migrou para a Senzala do Barro Preto, sede do Ilê Aiyê. Suas primeiras professoras foram as próprias filhas de Mãe Hilda, Hildemaria e Hildelice. Voltada a crianças da comunidade, qualquer que fosse sua religião ou etnia, a escola adotava um modelo de educação afrocentrado. Os alunos eram alfabetizados e aprendiam sobre cultura africana. Mas não se falava em religião: tratar de religião, dizia mãe Hilda, era papel da família, não da escola. “Minha avó nunca foi à escola. Aprendeu a assinar o nome quando eu já era uma criança”, diz Valéria, que nasceu em 1985. “Mas sempre valorizou a educação como caminho para o desenvolvimento”.
Hoje, a neta biógrafa procura dar sequência ao trabalho da avó. Em 2022, Valéria criou o Instituto da Mulher Negra Mãe Hilda Jitolu, que ela dirige. A instituição promove ações em prol de mulheres e meninas negras, cis e transexuais. Organiza cursos voltados à geração de renda, e atividades de educação em direitos humanos. Valéria conta que outro objetivo do Instituto é o de resgatar e preservar a memória de mulheres negras que atuaram para combater o racismo. O lançamento da biografia de Mãe Hilda faz parte desse esforço. Com o livro, Valéria diz querer inspirar meninas e mulheres a chegar mais longe. “Essa é a história de uma mulher negra, nascida no início do século passado, que conseguiu impactar um imenso número de pessoas, mesmo sem ter acesso à educação”, conta. “Quando conto a história de Mãe Hilda, eu digo a meninas e mulheres que elas podem muito mais”.
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