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Braços dados, sim, mas para impedir a violência sexual

Mara Carneiro

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Nos últimos dias, o País acompanhou pelos meios de comunicação a saga de uma menina de dez anos para conseguir o acesso à interrupção legal de uma gravidez. A partir do que foi noticiado, sabe-se que a criança preenchia pelo menos dois quesitos garantidos em lei para o procedimento: gestação provocada por estupro e gravidez de risco em razão da idade e desenvolvimento físico. A lei foi cumprida ao fim, mas nenhuma criança deveria enfrentar todos os percalços e violações de direitos que esta menina enfrentou até aqui.

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Todos nós conhecemos em nossos círculos de convivência, ou temos em nossas famílias, meninas de dez anos. Causa dor somente imaginar alguma delas passando pelos seguintes desrespeitos à sua dignidade. A necessidade de viagem para outro estado para a realização de um procedimento legal; o julgamento pela Justiça de um caso em que não caberia apreciação do tema; a exposição da identidade na internet e o cenário vexatório gerado por uma horda que tentou impedir, de braços dados, o ingresso da criança no hospital. Criança esta que havia passado por situações reiteradas de violência sexual que resultaram na gravidez.

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O grupo de insensatos formou um pandemônio na porta de um hospital, nomeando de “assassina” a criança e equipe médica, tentaram impedir um procedimento ao qual nenhuma mente em sã consciência poderia se opor. Ou seja, queriam forçar uma criança de dez anos a seguir com uma gravidez resultante de repetidos estupros e que poderia provocar sua própria morte. Em nome de quem? Evocaram valores cristãos no ato. Ora, onde está o amor, a solidariedade e o acolhimento pregado por Cristo que essas pessoas dizem seguir? Onde está o “deixe-vir a mim as crianças” (Mateus, 19:04) ou o “não julgueis para não ser julgado” (Mateus, 7:01)?

Vivemos diversos casos de violências neste País. Histórias vistas com indiferença por muitas pessoas. Ainda assim, é espantoso que pessoas ditas “defensoras da vida” descartem completamente a vida desta garota, vítima de violência sexual prolongada por quatro anos e que tinha como seu algoz um parente próximo. Por que a vida desta menina não conta, por que a tristeza da violência sofrida não mobiliza toda a sociedade? Onde estão estes “defensores da vida” no momento em que 11 mil crianças e adolescentes são assassinadas no país por ano? (Dados da Unicef de 2019)

Precisamos de “defensores da vida” que enfrentem o debate franco e aberto sobre violência sexual e questões de gênero nas escolas para prevenir violências. A cada hora, são quatro meninas de até 13 anos estupradas, segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2019. Nossa dor é perceber que a lembrança dessas vítimas diárias é “um quadro que dói” menos para quem foi para a porta do hospital. Até quando “seremos os mesmos”?

É urgente trazermos para o centro do debate a autoproteção infantil e a prevenção à violência em todos os lugares possíveis: famílias, escolas, postos de saúde, rodas de conversa, grupos de apoio, mídia. Precisamos de braços dados e vigília permanente da comunidade, sociedade e Estado para identificar, denunciar e responsabilizar abusos, explorações, espancamentos, estupros, enfim, todos os tipos de violência que, na maioria das vezes, ocorrem dentro de casa.

Infelizmente, o espaço da família, representado em tantas histórias como lugar de aconchego e proteção, não é o mesmo para todas as pessoas. É na família e no ambiente doméstico onde mais se registram violências contra crianças, mulheres, idosos, pessoas com deficiência e população LGBT. No caso da violência sexual, é preciso destacar ainda o machismo e racismo, que fazem essa chaga se perpetuar. Não à toa, a maior parte das vítimas é formada por meninas negras. A esse quadro soma-se o grande desmantelo e sufocamento das políticas sociais e de assistência que o País enfrenta historicamente, acentuado recentemente desde a Emenda Constitucional 95, a Emenda do Teto de Gastos.

Quantas meninas de dez anos se sentem minimamente seguras neste momento para gritar contra a violência? Muitas sofrem solitárias, em silêncio, por falta de retaguarda institucional, de profissionais qualificados que as escutem de modo seguro e respeitoso, sem serem expostas a situações vexatórias. Isso porque faltam braços dados para impedir novas violências e sobram dedos de julgamento e constrangimento por parte da família, da sociedade e do Estado, quando não as acolhem do modo devido e legal.

Façamos um chamado para que nossos braços dados, em escolas, ruas, campos, delegacias, abrigos, transportes públicos, construções, sejam apenas para impedir novas violências. E nunca mais para aumentar a dor de uma criança vitimada por uma tristeza tão perversa. É essa a nossa grande esperança e por isso lutamos!

Mara Carneiro é coordenadora geral do Centro de Defesa da Criança e do Adolescente do Ceará (CEDECA Ceará)

Foto de topo – comunicação CEDECA Ceará

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