Brasil falha na proteção de crianças e adolescentes, aponta relatório da Comissão Interamericana de Direitos Humanos
Documento aponta uso excessivo da privação de liberdade no sistema socioeducativo. Unidades de internação enfrentam denúncias recorrentes de tortura, superlotação, uso indiscriminado de armas de choque, más condições sanitárias e negligência em saúde e educação.

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No seu mais recente Relatório Anual, publicado na terça-feira (8), a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) revela um cenário alarmante e sistematicamente negligenciado em relação aos direitos de crianças e adolescentes. O documento expõe violações estruturais nos sistemas de justiça juvenil, comunidades terapêuticas e políticas públicas destinadas à infância — colocando em xeque o compromisso do país com a Convenção sobre os Direitos da Criança, da qual é signatário.
Internação como regra: o fracasso do sistema socioeducativo
No documento, a CIDH avalia os avanços e desafios vivenciados pelos Estados membros na proteção e promoção dos direitos humanos. A seção dedicada ao Brasil toma por base uma visita feita pela CIDH ao país em 2018. Busca apurar o que mudou desde então e verificar se o país cumpriu as recomendações feitas pelo órgão na ocasião.
Uma das críticas mais severas do relatório recai sobre o uso excessivo e sistemático da privação de liberdade no sistema socioeducativo brasileiro. Dados do Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (SINASE) mostram que 70% dos adolescentes em conflito com a lei cumprem medidas privativas de liberdade — mesmo quando os atos infracionais não envolvem violência contra a pessoa, como tráfico, porte de arma ou furto.
Além do desrespeito ao princípio da excepcionalidade, as unidades de internação enfrentam denúncias recorrentes de tortura, superlotação, uso indiscriminado de armas de choque, más condições sanitárias e negligência em saúde e educação. Relatos indicam que adolescentes são frequentemente deixados sem aulas por meses e têm dificuldade de acesso a atendimentos médicos básicos.
Há, ainda, o agravante de represálias contra os adolescentes que denunciam abusos: muitos sofrem punições físicas e psicológicas, incluindo dormir sem colchão, isolamento e castigos humilhantes.
Internação ilegal em comunidades terapêuticas
Outro ponto gravíssimo levantado pela CIDH diz respeito à presença de adolescentes em comunidades terapêuticas — instituições privadas voltadas ao tratamento de dependência química. Apesar da proibição do Ministério da Saúde quanto à internação de menores de idade, inspeções revelaram que diversas comunidades descumprem essa diretriz, submetendo jovens a internamentos forçados, violando frontalmente o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA).
O relatório destaca que esses espaços, muitas vezes financiados com recursos públicos, reproduzem práticas asilares, promovem abusos físicos, trabalhos forçados, isolamento familiar e imposição de práticas religiosas coercitivas. Trata-se de um modelo que, segundo a CIDH, viola a dignidade dos adolescentes e contraria os princípios de uma política de saúde baseada em direitos humanos.
Ecos da sociedade civil: vozes de alerta
Para o diretor executivo do Desinstitute, Lúcio Costa, os achados do relatório apenas confirmam aquilo que os movimentos sociais e organizações de direitos humanos denunciam há anos: “O Brasil insiste em lidar com populações vulnerabilizadas a partir do confinamento, da disciplina forçada e do silêncio institucional. Mas não há política pública legítima sem escuta, sem cuidado e sem reparação.”
Já o pesquisador associado do Desinstitute, Vinicius Miguel, destaca a omissão estatal com relação às infâncias que mais precisam de proteção: “Quando o Estado se furta a garantir escola, saúde mental e espaços de convivência, ele não está apenas se omitindo. Está produzindo abandono, institucionalizando traumas e agravando as desigualdades que empurram crianças e adolescentes para a rota da exclusão e da punição.”
Recomendações ignoradas e um sistema em colapso
A CIDH reforça que a privação de liberdade deve ser o último recurso e por tempo mínimo. Medidas alternativas em meio aberto, como prestação de serviços à comunidade e liberdade assistida, devem ser priorizadas — especialmente em casos de crimes sem violência. Também aponta que as unidades socioeducativas precisam ser urgentemente adaptadas para garantir educação, saúde e reintegração social, e não meramente castigo punitivo.
O relatório termina com uma advertência clara: o Brasil tem falhado de forma sistemática na proteção de seus meninos e meninas. A lógica de repressão e encarceramento prevalece sobre qualquer compromisso com a infância. E, enquanto isso, milhares de jovens seguem sendo punidos por um sistema que, ao invés de protegê-los, os abandona.
Sobre o Desinstitute
O Desinstitute é uma organização da sociedade civil sem fins lucrativos, que atua pela garantia de direitos humanos e pelo cuidado em liberdade no campo da saúde mental, no Brasil e na América Latina.
Fundado em 2020, o Desinstitute nasce da união de pessoas com trajetórias nas áreas da saúde e do Sistema de Justiça, que se organizaram para formar uma instituição orientada pelos princípios da luta antimanicomial. Dedicado à defesa do SUS (Sistema Único de Saúde) e do Estado Democrático de Direito, tem como objetivo incidir sobre políticas públicas.
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