Carolina Maria de Jesus: disco revisita músicas que autora gravou nos anos 1960
Rafael Ciscati
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Foi ainda no início pandemia de covid-19 que a percussionista Sthé Araújo se aproximou de Carolina Maria de Jesus. Naqueles meses de isolamento social, a atualidade de Quarto de Despejo — obra mais famosa da autora — ajudou Sthé a refletir sobre a realidade brasileira. “Carolina escreve sobre desigualdades sociais, sobre fome, sobre questões que enfrentamos ainda hoje “, conta a a artista. Logo, a jovem de 26 anos se tornou consumidora voraz de lives, livros e palestras sobre a escritora. Essa foi a primeira boa surpresa que teve durante a pandemia. A segunda viria meses mais tarde, no final de 2021. Sthé estava em casa quando recebeu um telefonema do Selo Sesc de música. Queriam que ela assumisse uma missão: produzir — e atualizar — o álbum de samba que Carolina Maria de Jesus compôs e gravou nos anos 1960. ” Eu perdi o fôlego”.
Basta uma busca rápida pelas página de jornais antigos para descobrir que o início dos anos 1960 foi agitado para Carolina Maria de Jesus. Nascida no interior de Minas Gerais, a escritora morava na favela do Canindé, em São Paulo, quando conheceu o jornalista Audálio Dantas. Carolina vivia de recolher e vender sucata. Em casa, mantinha cadernos com anotações sobre seu cotidiano. Dantas se surpreendeu com a forma como Carolina elaborava, literariamente, uma realidade de privações. Ajudou-a a publicar suas notas num romance que causou furou : e que figurou, por meses, na lista de mais vendidos dos jornais paulistas e cariocas. (Antes do contato com Dantas, Carolina já havia publicado alguns escritos, mas sem sucesso. O jornalista recusava o rótulo de “descobridor” da autora – ela é que o teria descoberto).
Já no ano seguinte, Carolina viajou pela América Latina para divulgar o livro. A obra virou peça de teatro. E, na esteira do sucesso literário, a autora gravou um disco. Em Quarto de Despejo – Carolina Maria de Jesus cantando suas canções, a autora deixava clara sua paixão pelo Carnaval em marchinhas animadas. Na sequência de 12 músicas, há ainda sambas que narram problemas cotidianos, que falam de miséria, de amor, ou que debocham de personagens da favela . Tal qual seu livro mais famoso, as composições foram escritas em caderninhos recolhidos do lixo. “A música nascida no ‘Quarto de Despejo’ é boa e autêntica, com gosto de povo”, escreveu Audálio Dantas no verso do LP.
Nos jornais da época, os anúncios sobre o lançamento do disco deixavam transparecer uma imagem estereotipada da escritora: mostravam Carolina usando lenço na cabeça, escondendo os cabelos crespos. Diziam que ela cantava, “com simplicidade, suas composições inspiradas no realismo da favela”. É uma descrição superficial: em muitos momentos, a autora deixa de lado as mazelas sociais para falar de amores ternos, ou para rir com bom-humor. “Carolina mostra que é assim a vida da gente. Cheia de problemas, mas com alegria, com beleza”, diz Sthé. Convidada a revisitar as canções, ela topou de imediato. Mas diz que logo se sentiu paralisada diante da responsabilidade de atualizar uma autora que falava tanto sobre o Brasil, e sobre a realidade familiar da própria Sthé.
Anúncio do disco Quarto de Despejo publicado no jornal Folha de S. Paulo em 1961
Nascida na periferia da zona sul de São Paulo, Sthé foi criada pelas tias e pela avó, uma mulher negra que trabalhava como empregada doméstica. Para complementar a renda, não era raro a senhora recolher latinhas de alumínio nas ruas. “Com o dinheiro, ela comprava meu material escolar. A cartolina e os lápis que eu usava na escola”, afirma a artista. Ao ler Carolina, Sthé conta que passou a compreender melhor a avó. “Ela também era uma mulher dura, que não confiava nas pessoas de fora da família”, lembra. “Com Carolina, eu entendi que havia outras famílias parecidas com a minha. As histórias que ela conta são minha história também”.
Antes de pensar na música, Sthé lembra que se sentou para escrever, e pensar nos pontos de contato entre as histórias dela e as de Carolina. Aos ouvidos da jovem, no entanto, os ritmos do disco soavam descolados do conteúdo dos versos. Sthé cresceu ouvindo os Racionais MCs. “Para mim, música de crítica social é o rap, o funk”, afirma.
Na versão de 2023, as composições de Carolina incorporam elementos contemporâneas. Em cinco das 12 músicas, os vocais ficam a cargo de Nega Duda, uma referência no samba de roda em São Paulo e cantora do grupo afro Ilu Obá de Min. Em outras três, quem canta é Girlei Miranda, também do Ilu Obá de Min. Os tambores e batuques soam mais altos. “Geralmente, a percussão ocupa um lugar subalterno nas músicas”, diz Sthé. “Eu queria um álbum em que ela fosse protagonista”. Com isso, uma de suas pretensões era ressaltar a africanidade dos sambas. “Lidar com a percussão é fazer um resgate diaspórico”, conta. A nova roupagem das músicas foi reflexo, também, de um exercício de imaginação. “Fiquei pensando no processo de composição de Carolina. Ela compunha em uma mesa de bar? Ela tinha instrumentos musicais, ou batucava na mesa, na tampa da panela?”.
Entre o convite e o lançamento do disco, Sthé conta que viveu pouco mais de 12 meses de trabalho e ansiedade. Bitita – as composições de Carolina Maria de Jesus, chegou às plataformas de streaming em março. Quando conversou com Brasil de Direitos, Sthé fizera o primeiro show dias antes. A recepção foi positiva. “Algumas pessoas vieram me dizer que surpreenderam, porque não conheciam a Carolina compositora. Outras se identificaram com as canções. Uma senhora me disse que o pai compunha sambas parecidos”, diz a artista. Ela comemora. “Carolina é uma autora fundamental. Precisa estar nos livros, nos teatros e nos palcos”.
Foto de topo: a percussionista Sthé Ribeiro (Divulgação/ Sesc-SP)
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