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Carrinho biblioteca é recolhido em Porto Alegre

Biblioteca da Vila e outros carrinhos puxados por catadores de recicláveis foram confiscados pela prefeitura da capital gaúcha. Lei municipal diz que medida é importante para melhorar o trânsito

Imagem propriedade da Brasil de Direitos

Bárbara Diamante *

12 min

Foto de topo: arquivo pessoal / Cristiano Sant’Anna

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Foto de topo: arquivo pessoal / Cristiano Sant’Anna

O dia mal começara, às 9h de uma segunda-feira calorenta em Porto Alegre (RS), quando o fotógrafo Cristiano Sant’Anna recebeu uma mensagem no celular. “Levaram nosso carrinho”. Tomou um susto. Quem escrevia era o amigo Jacson Carboneiro. Morador da Vila dos Papeleiros, um bairro popular do centro de Porto Alegre, Jacson trabalha como catador de recicláveis. A mesma atividade de seu pai, Antônio Carboneiro, e da maioria de seus vizinhos.

Há mais de 20 anos, nas suas andanças pela cidade, Antônio recolhe livros que encontra no lixo. Criou, com isso, um acervo de obras descartadas.  Por muito tempo, alimentou o desejo de construir uma biblioteca com todo esse material. Foi somente em 2019, após uma conversa com Cristiano, que conhecera em uma oficina de fotografia anos antes, que o plano saiu do papel. 

Ou quase. Na Vila dos Papeleiros não havia espaço para uma biblioteca. O jeito foi improvisar: no lugar de uma sala com paredes de alvenaria, a biblioteca de Antônio foi organizada no carrinho de mão que, tempos antes, ele usava para recolher recicláveis. O veículo foi reformado e rebatizado: nascia a “Biblioteca da Vila”. Aparentemente trivial, de cor amarela e detalhes em vermelho, o carrinho apinhado de livros logo ficaria famoso na cidade. Para emprestar um livro, bastava pedir: por não ser uma biblioteca fixa, a devolução não tinha uma data específica. Devolvia quem tivesse a chance de reencontrá-la pelas ruas. A única regra era: “se não devolver o livro, ao menos passe adiante”.

 

Assim foi até o carrinho ser confiscado na manhã daquela segunda-feira fatídica. Estacionado à porta da casa de seu Antônio, o carrinho biblioteca foi levado pelo Departamento Municipal de Limpeza Urbana (DMLU).

“Quando pensei na biblioteca, num carrinho, eu queria passar à população de Porto Alegre que o papeleiro não carrega só ‘lixo’, carrega cultura também”, relembra o criador do projeto. (Foto: arquivo pessoal / Cristiano Sant’Anna)

“Quando pensei na biblioteca, num carrinho, eu queria passar à população de Porto Alegre que o papeleiro não carrega só ‘lixo’, carrega cultura também”, relembra o criador do projeto. (Foto: arquivo pessoal / Cristiano Sant’Anna)

 

“Muitas das coisas que aprendi na vida foram lendo e eu queria passar isso adiante. Toda pessoa que lê, vê o mundo melhor. Eu acho isso muito bacana”, diz Antônio (Foto: arquivo pessoal / Cristiano Sant’Anna)

“Muitas das coisas que aprendi na vida foram lendo e eu queria passar isso adiante. Toda pessoa que lê, vê o mundo melhor. Eu acho isso muito bacana”, diz Antônio (Foto: arquivo pessoal / Cristiano Sant’Anna)

O confisco do carrinho foi um dos lances da Operação Via Dignitatis, da Prefeitura de Porto Alegre. Iniciada três dias antes, a ação tinha como objetivo a “identificação e repressão criminal” . Procurada por Brasil de Direitos, a prefeitura da capital gaúcha enviou uma série de links para matérias publicadas na imprensa. Nelas, o órgão dá a entender que a operação fora motivada por reclamações feitas por comerciantes da região. Não há detalhes de quais reclamações foram essas. A Via Dignitatis fora planejada para se estender por mais 90 dias. Segundo a Prefeitura, diversas secretarias e órgãos municipais foram envolvidos para “fiscalização, ordenamento territorial, assistência social e segurança pública, buscando qualificar a zeladoria da região”.

Dentre os serviços integrados estava o Departamento Municipal de Limpeza Urbana (DMLU), responsável pela retirada de “bens inservíveis” deixados pelas ruas. Um bem é considerado inservível se está em perfeitas condições de uso, mas abandonado, se a manutenção envolve mais gastos que ganhos ou se perdeu suas características de uso e o custo de recuperação é maior do que a compra de um novo . O carrinho biblioteca não se encaixava nessa descrição. Foi levado mesmo assim. 

A megaoperação pegou os moradores da Vila dos Papeleiros de surpresa. No momento da retirada do carrinho, Jacson – o filho do sr. Antônio – nem estava por perto. Estava em Torres, região litorânea, há cerca de 2 horas de distância de Porto Alegre, e só ficou sabendo quando o pai avisou que o carrinho já não estava mais na porta de casa. Ato contínuo, notificou o amigo, Cristiano, que correu para a Vila dos Papeleiros.

Morador de Bom Fim, zona central de Porto Alegre, Cristiano demorou por volta de 20 minutos no trajeto. No momento em que colocou os pés na Vila, avistou um carrinho amarelo sendo carregado por uma das retroescavadeiras que se dirigia para um caminhão. O coração apertou por um instante. Pensou ser o carrinho da Biblioteca, que tinha a mesma cor. Não era o caso: se tratava somente de mais um entre os mais de 29 carrinhos levados pelo DMLU.

O embate entre a Prefeitura e os catadores de materiais recicláveis de Porto Alegre dura mais de 17 anos. Em 2008, foi sancionada a Lei Municipal nº 10.531, de autoria de Sebastião Melo, na época vereador e atual prefeito da cidade de Porto Alegre. A lei previa a retirada de circulação dos veículos de tração animal, conhecidos como carroças, e dos veículos de tração humana em até 8 anos, sob a justificativa de melhorar o trânsito da cidade. Desde então, são idas e vindas entre prorrogações de prazos para o fim da circulação dos carrinhos.

No meio tempo entre as prorrogações, foram vários os casos de catadores multados enquanto trabalhavam, ou que tiveram seus carrinhos recolhidos, antes mesmo da Operação Via Dignitatis. Na avaliação de Cristiano, o cerco a eles tem um motivo: a Parceria Público-Privada (PPP) dos Resíduos Sólidos Urbanos. O projeto, que ainda não foi implementado, pretende contratar uma empresa privada para gerir o serviço de coleta e deixá-la mais centralizada pelos próximos 35 anos. 

Para Paula Garcez, advogada dos catadores da Vila dos Papeleiros, a PPP não é adequada à política nacional de resíduos sólidos, uma vez que conta com a extinção da categoria dos catadores. “A parceira presume que os catadores não têm competência para realizar aquele serviço, então a empresa vai subcontratar funcionários”, analisa.

Numa das últimas conversas que teve com os catadores, em agosto de 2024, a prefeitura se comprometeu a adiar a aplicação da lei que proíbe a circulação dos carrinhos até mas resultou somente 31 de dezembro de 2025, com a possibilidade de prorrogação por mais seis meses. Por essa razão, e por não terem recebido notificação prévia para regularizar a condição dos carrinhos antes da data combinada, nenhum dos carrinheiros que vive na Vila dos Papeleiros esperava ter seus carrinhos retirados no dia da operação.

Brasil de Direitos entrou em contato com o Departamento Municipal de Limpeza Urbana (DMLU) para entender a situação sob o ponto de vista da Prefeitura. Como resposta, foram encaminhados links direcionando a três matérias publicadas no portal da Prefeitura. Uma delas conta que, durante a operação, foram removidas 115 toneladas de entulho com destino ao aterro sanitário. Outra explica o que é a Parceria Público-Privada e responde às dúvidas frequentes. Entre elas, a de que os catadores continuarão prestando serviços, por meio das cooperativas.

Em relação a como ficará a situação trabalhista dos catadores autônomos, foi encaminhada uma terceira matéria, que diz respeito ao lançamento do Programa Recomeços. O projeto pretende fornecer “apoio com novas vagas de trabalho, capacitação, cursos e suporte para transição de carreira”.

Paula conta que o novo programa é “insuficiente e repete um projeto anterior que não funcionou”. A iniciativa implementada anteriormente, em 2012, chamava-se Todos Somos Porto Alegre, e não foi bem recebida pelos papeleiros. Muitos deles apontaram que havia cursos que não dialogavam com o trabalho que realizam no dia a dia. 

O bairro popular Loteamento Santa Terezinha, mais conhecido como Vila dos Papeleiros, fica a menos de 2 quilômetros da rodoviária de Porto Alegre e próximo ao Centro Histórico; Abriga cerca de 3 mil pessoas – na maioria, papeleiros, que começaram a se aglomerar na região em meados dos anos 1990.

Seu Antônio foi uma dessas pessoas e mora lá desde essa época. Antes de morar na Vila dos Papeleiros de chegar no local, o líder comunitário, seu Antônio, vivia em Viamão, município próximo, e por muito tempo trabalhou informalmente. Fazia um serviço aqui, outro acolá. Em boa parte do tempo, vendia alimentos, como frutas, algodão doce e churros.

Chegou na Vila quando já não conseguia trabalhos como vendedor. Começou, então, a coletar materiais recicláveis. A rotina se resumia a andar pela cidade, coletar os materiais recicláveis e, no final do dia, vender o que foi coletado aos galpões, locais em que a triagem da reciclagem é feita. Nesses espaços, os materiais são recebidos, separados e, em troca, os catadores que entregaram os recicláveis recebem um valor em dinheiro.

Ao pensar nos velhos tempos, ele se lembra de quando a região ainda não era organizada da forma que é hoje. Ao chegar, as casas eram feitas de papelão. Era tudo muito precário, era um local inseguro e sem saneamento. No início dos anos 2000, ele e outros moradores foram convidados a uma reunião na Secretaria de Saúde para discutir essas questões. 

Ainda que muito tímido, falou em nome dos habitantes da Vila durante o encontro. “Na reunião, eu comecei a falar da minha vida. Contei que eu morava em meio ao lixo, no meio de rato, barata…”, rememora Antônio. Tempos depois, se tornou o presidente de uma associação de moradores: a Arevipa (Associação de Reciclagem Ecológica da Vila dos Papeleiros). 

O reconhecimento ajudou a fazer com que a Vila dos Papeleiros ganhasse um lugar no mapa. A região ganhou moradias fixas, saneamento básico, creches e até uma quadra de esportes.

A paixão de Antônio por livros surgiu ao encontrá-los em meio aos materiais que recolhia, ainda no início dos anos 2000. Inicialmente, retirava as capas e os vendia para a reciclagem, até que percebeu que boa parte das publicações que encontrava estavam em bom estado. Resolveu guardá-los, para compor uma biblioteca futuramente. Enquanto o plano não saía do papel, guardava consigo exemplares, chegando a compor um acervo de cerca de 500 livros.

Em março de 2004, um incêndio em um dos galpões fez com que Seu Antônio perdesse tudo. “Uma moça que trabalhava comigo disse ‘tá vendo? Se tivesse vendido aqueles livros, tinha ganhado dinheiro’. Mas eu continuei sonhando”, relembra. Mesmo após o ocorrido, achou que valia a pena continuar guardando os livros que encontrava.

Em 2016, participou da oficina de fotografia promovida pela Beira-Movida Editorial, projeto do qual Cristiano participava, mas a proximidade  de Cristiano com Antônio e o filho dele só surgiria três anos depois, quando o fotógrafo resolveu reencontrar Antônio durante o mestrado. Foi nessa reaproximação que Jacson o conheceu e se tornaram amigos. Unidos pelo interesse em fotografia, resolveram fazer um ensaio juntos. Enquanto Cristiano ensinava Jacson a operar a câmera, Jacson ensinava Cristiano a puxar o carrinho.

Jacson, assim como Antônio, mantinha um acervo. Enquanto o pai guardava livros, ele colecionava quadros encontrados durante as coletas. Cristiano conheceu a coleção quando em uma das caminhadas com Jacson encontraram uma obra original do artista gaúcho Walmor Corrêa. 

Assim que percebeu que se tratava da criação autêntica, o fotógrafo entrou em contato com o artista, que expressou o desejo de visitá-los para rever o trabalho. Decidiram então criar um espaço chamado Museu de Resgates, destinado à exposição de obras encontradas nas ruas. 

Certo dia, seu Antônio estava sentado na porta de casa conversando despretensiosamente com Cristiano quando manifestou o desejo: “eu gostaria de fazer uma biblioteca no carrinho de papeleiro”. O fotógrafo abraçou a ideia e assim começaram. Os livros que o trio recolhe não são catalogados e, por isso, não se sabe ao certo quantos deles a biblioteca agrega hoje. A maneira como é realizado o “empréstimo” dos exemplares também dificulta o processo. 

O carrinho onde a biblioteca foi montada sobreviveu a muitos acontecimentos. O incêndio de 2004 e as enchentes de 2024 foram as mais marcantes. Para Jacson, é como se fosse parte da família. A Prefeitura chegou a oferecer um novo carrinho, mas não é o que desejam. Gostariam mesmo é de ter o carrinho de volta – ainda que somente o que restou dele – para darem um trato e voltar a circular como antes.

Mesmo sem o carrinho original, a Biblioteca continua viva. Hoje, utilizam o carrinho do Alemão, também morador da Vila dos Papeleiros, que empresta o veículo para eventos. Por conta do carrinho ser emprestado, se vêem mais limitados que de costume e a circulação fica restrita somente ao bairro de origem. O plano de Antônio, Jacson e Cristiano, agora, é unir o projeto da Biblioteca da Vila ao Museu de Resgates. Esse é um jeito que encontraram para que a biblioteca possa ficar aberta ao público, enquanto não anda pela cidade.

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