Censura a livro de Ziraldo: Maluquinhos, Marrons, de todas as cores
O Menino Marrom foi barrado por escolas municipais de Conselheiro Lafaiete (MG). Foi interditada pela compreensão de quem, muitas vezes, não se assume racista
Avante - Educação e Mobilização Social
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“Puxa vida! Se um era marrom e o outro era – digamos – cor-de-rosa, por que é que todo mundo dizia que um era preto e o outro branco? Imagina: eles nunca haviam se preocupado com isto. Agora eles queriam saber o que que era branco e o que que era preto e se isso fazia os dois diferentes”. (O Menino Marrom, página 20)
O livro O Menino Marrom, de Ziraldo, editado pela primeira vez em 1986, foi barrado por escolas municipais de Conselheiro Lafaiete (MG). A ação dos familiares, corroborada pela prefeitura, escancara o racismo cotidiano, mascarado pelas boas intenções de cidadãos “de bem”. A mensagem de Ziraldo no livro, destacada no trecho acima, pronuncia as palavras de Mandela, em sua autobiografia – O longo caminho para a liberdade, de 1994: “Ninguém nasce odiando outra pessoa pela cor de sua pele ou por sua origem, ou sua religião. Para odiar, as pessoas precisam aprender.”
O Menino Marrom e o Menino Cor-de-rosa, para quem ainda não teve a oportunidade de conhecê-los, são dois amigos que cresceram juntos e compartilharam as diferentes etapas da vida, sem que os seus fenótipos fossem uma questão entre eles.
A genialidade de Ziraldo se manifesta por meio de uma discussão fantástica e sutil, que ele faz a partir de cores que dispararam as curiosidades e descobertas dos meninos, deixando a cargo do leitor inferir sobre problemáticas raciais que ele faz menção como uma “invenção de moda”, uma vez que, segundo ele, “para o homem, tudo vira símbolo”. Símbolos esses que passam longe da compreensão e imaginação das duas crianças.
Os argumentos que embasaram os protestos das famílias de Conselheiro Lafaiete giram em torno de duas cenas: a primeira descreve o desejo ingênuo do Menino Marrom de que uma senhora seja atropelada. Esse desejo traduz a percepção pueril de um garoto que, diante da recusa de sua ajuda para atravessar a rua, concluiu que o atropelamento era um desejo particular da idosa. A cena é tão emblemática que, para os leitores atentos, a recusa pode significar uma atitude racista de uma senhora que não queria ser acompanhada por um menino negro.
A segunda cena diz respeito ao pacto de sangue proposto pelos amigos. Vista como um ato perigoso pelos interventores mineiros, o acordo simboliza o selo da amizade dos personagens. Será que o pacto foi interpretado como uma referência ao candomblé? Talvez! Afinal, uma cena semelhante aparece no clássico do cinema Hollywoodiano, Meu Primeiro Amor (1991), sucesso reprisado em sessões vespertinas no Brasil, pela maior emissora de TV aberta do país – em que os amigos representados por Anna Chlumsky e Macauley Culkin também selam a amizade com sangue. No entanto, as inúmeras exibições nunca suscitaram levantes contra o filme. Será que tem relação com o fato de, nesse caso, as duas crianças serem brancas?
É bom reforçar que, por medo de se machucarem, os meninos optaram pelo uso de tinta. Na ausência de tinta vermelha, o azul foi a cor escolhida para firmar a aliança entre os amigos. Mas os questionamentos dos meninos vieram à tona: “Quem é que tinha falado pra gente este negócio de sangue real?” No final das contas, eles chegaram à conclusão de que, por alguma razão, sabiam que o valor da amizade implicava “um pacto de sangue azul”.
A obra que era para ser lida como uma história de amizade e diversidade foi interditada pela compreensão de quem, muitas vezes, não se percebe ou não se assume racista.
Outra vez… De novo…
O caso não é isolado. Censura de livros infantis no país é motivo de preocupação entre literários, pesquisadores e educadores. Após a última ocorrência com a obra de Ziraldo, a relatoria da ONU apontou o Brasil como um dos exemplos de alerta no que se refere à proibição de livros em escolas, bibliotecas e demais espaços culturais, por intervenção de associações de pais, grupos religiosos e outros agentes sociais.
A interdição afeta a laicidade da escola, dos espaços socioculturais e sabota a construção individual das pessoas e crianças, que ficam à mercê da intervenção de iniciativas autoritárias, conservadoras e enviesadas sobre as artes, a cultura e a educação.
Em março de 2024, O Avesso da Pele, de Jeferson Tenório, vencedor do Jabuti em 2021, inserido no Programa Nacional do Livro Didático (PNLD 2021), foi removido de escolas de quatro estados – Rio Grande do Sul, Paraná, Goiás e Mato Grosso do Sul – sob a justificativa de conter cenas de sexo impróprias para menores. Indicado para estudantes do Ensino Médio, o livro denuncia o racismo estrutural, a objetificação dos corpos pretos e a violência.
Maio de 2024 foi a vez do Pequeno Manual Antirracista, da filósofa Djamila Ribeiro, ser questionado por pais de alunos do Colégio Antônio Vieira, em Salvador (BA), que viram na adoção do livro para as aulas de religião uma afronta à abordagem católica da Rede Jesuíta de Educação, da qual a escola faz parte. Vale lembrar que Salvador é a cidade mais negra, fora do continente africano.
Os três casos revelam não somente o racismo despudorado, mas um projeto que visa resistir à emergência da educação antirracista no país. E aí, é preciso retornar a Mandela, “se as pessoas aprendem a odiar, elas também podem ser ensinadas a amar”, e relembrar com Ziraldo que o racismo não faz parte do repertório infantil, até que… “um dia, aquela história do preto e do branco voltou-lhe à cabeça (…). Quem é que inventou que o preto é contrário do branco? Será que é para que fiquemos um contra o outro?”, se preocupou o Menino Marrom, que já não era mais um menino quando compreendeu a pequenez da inteligência humana.
A Avante – Educação e Comunicação Social repudia a censura ao livro pela prefeitura de Conselheiro Lafaiete e reforça o seu compromisso com a educação antirracista e de qualidade.
*Publicado, orginalmente, no site da Avante – Educação e Mobilização Social
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