Com fotomontagens, antropóloga sobrepõe passado e presente do Carandiru
Gabriela Carvalho diz que, ao transformar antigo presídio em parque, governo tentou apagar a memória das violências praticadas ali. Suas imagens resgatam passado traumático
Rafael Ciscati
5 min
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A antropóloga Gabriela Carvalho era ainda estudante de ciências sociais quando se deu conta de um incômodo — ou melhor, da ausência dele.
Tempos antes, quando tinha 16 anos, Gabriela cursara museologia da ETEC Parque da Juventude. A instituição funciona, hoje, onde um dia existiu o presídio do Carandiru, na zona Norte da cidade de São Paulo. Desativado em 2002, ele foi palco do maior massacre já ocorrido em uma prisão brasileira. Em 1992, agentes da Polícia Militar mataram ao menos 111 detentos custodiados no pavilhão nove da penitenciária. O número é questionado: as estimativas feitas por sobreviventes e organizações da sociedade civil falam em quase 300 mortos.
Como aluna de museologia, Gabriela trabalhou com o acervo que, tempos depois, daria origem ao Espaço Memória Carandiru. Ele ocupa uma sala no andar térreo do colégio. Reúne imagens da antiga prisão, duas celas mobiliadas e outros tantos equipamentos que ajudam a recontar a história da penitenciária. “Ajudei a higienizar esses documentos e objetos. Na época, aquela história de sofrimento não me afetou”, lembra. A falta de conexão com o que deveria ser uma memória traumática, diz ela, se repetia entre seus companheiros de curso. “O incômodo, com essa apatia, viria só anos depois, já na faculdade”.
>>Leia também: O Carandiru ficava aqui – grupo realiza roteiro de memória pelo antigo presídio
Ela transformou a inquietação em pesquisa — e no ensaio fotográfico que acompanha esse texto.
Ao longo de 2019, Gabriela desenvolveu um trabalho de etnografia no Parque da Juventude. A intenção era entender como os frequentadores do espaço se relacionam com o passado violento do lugar. As conclusões foram publicadas no artigo “Carandiru e os espaços fraturados de memória”. Nele, Gabriela argumenta que a falta de informação dela e dos colegas sobre o antigo presídio se repete entre os frequentadores do Parque. E não é mero descuido: é projeto. “O espaço do parque despista as pessoa que passam por ele, e empreende um apagamento da memória”.
Nos mais de 240 mil metros quadrados do Parque da Juventude, há uma biblioteca, um colégio, quadras de esporte. Não há qualquer menção à penitenciária. O Espaço Memória Carandiru, no qual ela trabalhou, só recebe visitantes mediante agendamento. Para acessá-lo, é preciso passar pelo pátio da escola. Na parte externa do parque, não há placas estimulando sua visitação.
As imagens produzidas por Gabriela tentam trazer à tona essa memória soterrada. Elas sobrepõem fotos feitas pela pesquisadora a imagens de arquivo. No conjunto, mostram aquilo que a arquitetura do parque tenta apagar. Você pode conferir o ensaio completo no artigo que ela publicou. Ele recebeu o 2º lugar do Prêmio Pierre Verger 2020 na categoria Ensaios Fotográficos.
O desenho atual do Parque da Juventude começou a ser pensado no final dos anos 1990. Na época, o governo paulista promoveu um concurso destinado a arquitetos e paisagistas. Seu edital definiu algumas exigências: o novo complexo deveria atender a usos públicos e institucionais; algumas das edificações do antigo presídio seriam mantidas; e o pavilhão 9, onde ocorreu o massacre, tinha de ir para o chão. Havia o desejo, entre organizações da sociedade civil, de manter o prédio e transformá-lo numa espécie de memorial. A ideia foi descartada. “O que se fez ali foi uma opção política pelo esquecimento”, diz a antropóloga.
Gabriela acredita que era possível seguir um caminho do meio, capaz de requalificar o espaço e, mesmo assim, respeitar a memória das pessoas mortas durante o massacre. “Esse deveria ser o único caminho possível, inclusive, considerando a gravidade das violações de direitos que aconteceram ali”. No Brasil, diz ela, há exemplos de iniciativas que souberam lidar com a memória de passados traumáticos sem recorrer a apagamentos. Caso do Memorial da Resistência, na própria cidade de São Paulo. O museu funciona no mesmo prédio que, até 1983, sediou o Departamento Estadual de Ordem Política e Social do Estado de São Paulo (DEOPS-SP), órgão de repressão da Ditadura Militar. Conta a história da resistência ao regime de exceção.
Na Bahia, para onde Gabriela se mudou para cursar um mestrado, existe o Parque Estadual de Canudos. Ele preserva a história da guerra ocorrida no final do século XIX, quando tropas do exército republicano mataram 20 mil sertanejos considerados monarquistas. “ O massacre aconteceu há quase 130 anos. Quem vai ao parque sai com a sensação de que Canudos foi ontem”, diz Gabriela.
No Parque da Juventude, a memória do antigo presídio continua em disputa. Hoje, há grupos de sobreviventes do cárcere que organizam roteiros de memória pelo espaço. Caso da atividade realizada pelo Instituto Resgata Cidadão (Irec), que aproveita um passeio guiado pelo parque para questionar a violência do sistema carcerário brasileiro.
Durante suas andanças para escrever o artigo, Gabriela também notou fissuras. A maioria dos frequentadores do Parque via como positiva a transformação. Os frequentadores negros, no entanto, tendiam a questionar como a história do antigo presídio fora escamoteada. “E manifestavam o temor de ser vítimas da violência policial que marcou aquele lugar”, conta. “O Brasil tem um histórico imenso de massacres praticados pelas forças de segurança. Discutir esse passado, sobretudo nesse momento de avanço da extrema direita, é essencial para o país”.
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