Como a rádio Papo de Crente usa a Bíblia para falar sobre direitos humanos
Criada pela Frente de Evangélicos pelo Estado de Direito, atração quer dialogar com religiosos sobre direitos fundamentais
Rafael Ciscati
7 min
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“Que a paz do senhor esteja com você, meu irmão, minha irmã”. Passava pouco das quatro da manhã de um sábado no início de outubro, e a voz trovejante do pastor Marco Davi de Oliveira dava às boas-vindas aos notívagos que sintonizavam na 93 FM – uma rádio evangélica carioca. “Que alegria ter a sua audiência mais uma semana”, continuou o pastor, antes de partir para o assunto da noite. O primeiro turno das eleições acontecera na semana anterior, e Oliveira parecia preocupado. “Houve um aumento no número de congressistas que se posicionaram contra a ciência, contra as vacinas, a favor do porte de armas”, disse, ao que foi respondido por Eulália Lemos, sua companheira de bancada. “O armamento é uma política de morte. Contraria os ensinamentos de Deus. ‘Eu vim para que tenham vida’, disse Jesus”. Começava ali o programa Papo de Crente.
Comandado por Oliveira e Lemos, o Papo de Crente é um programa semanal criado pela Frente de Evangélicos pelo Estado de Direito. Lança mão de linguagem simples, orações e louvores para falar sobre direitos humanos. Tudo a partir de uma perspectiva bíblica. “ A gente fala sobre acesso a direitos, violência religiosa, violência contra a mulher. Só que numa linguagem evangélica”, diz Oliveira. A ideia é aproximar esse público de discussões que, hoje, talvez soem progressistas demais aos ouvidos de religiosos conservadores. “Essa é uma população que foi, em parte, cooptada pela extrema direita”, diz Oliveira, sem meias palavras. “Mas isso aconteceu por culpa da esquerda, que foi arrogante e não quis falar com os evangélicos”.
Trata-se de um diálogo central para entender o Brasil de 2022. Há pelo menos três décadas, a população evangélica brasileira cresce em ritmo acelerado. Foram de 9% em 1991 para 22% dos brasileiros (ou 42 milhões de pessoas) em 2010, segundo o Censo Demográfico daquele ano. Um avanço que a pesquisa de 2022 deve tornar a detectar. Nesse meio tempo, lideranças protestantes ganharam relevo político. A Frente Parlamentar Evangélica na Câmara dos Deputados conta, hoje, com 203 deputados. Nem todos são crentes, mas todos se interessam por temas afeitos a esse público. E, em 2021, o presidente Jair Bolsonaro cumpriu a promessa de apontar seu “ministro terrivelmente evangélico”,o pastor presbiteriano André Mendonça, ao Supremo Tribunal Federal (STF).
Na disputa ao Palácio do Planalto, o grupo pende para o atual presidente. Segundo pesquisa Datafolha de oito de outubro, Bolsonaro tem a predileção de 68% dos eleitores evangélicos, contra 31% que dizem votar em Lula.
A Frente de Evangélicos pelo Estado de Direito surgiu em 2016, na esteira do impeachment da presidente Dilma Roussef. “Estávamos em um encontro de evangélicos contra o golpe quando o Anivaldo Padilha – que foi preso e torturado durante a ditadura – deu a ideia: por que vocês não criam uma frente?” lembra Oliveira. O grupo começou como um punhado de amigos que discutiam via Facebook, mas logo se expandiu. Hoje, conta com núcleos em 20 estados brasileiros. “Trabalhamos pela manutenção do Estado Laico e pelo Estado democrático de Direito”, diz Oliveira. “No meio evangélico, somos vistos como um grupo de esquerda”. A organização recebeu apoio do Fundo Brasil de Direitos Humanos, mesma instituição que mantém Brasil de Direitos.
O programa de rádio é uma empreitada mais recente. Estreou em agosto de 2021. O primeiro episódio falava sobre preservação ambiental e, no auge da pandemia, sobre a importância da vacinação. Num dos quadros, batizado de “Dizem por aí”, desmentia notícias falsas recebidas por ouvintes por whatsapp. Todas as edições ficam disponíveis nos tocadores online, e são distribuídas para mais de 40 rádios de todo o país.
A estreia de Oliveira aconteceu no programa de número 51. “Eu brinco que foi uma boa ideia”, ri. Ele faz graça mas, três meses atrás, não estava tão certo da decisão. Aos 56 anos de idade, o pastor já acumulava 24 anos de ministério quando foi convidado a ser apresentador de rádio meio que por acaso. Aceitou meio que a contra-gosto. O então locutor, Weslley Teixeira, teve que abandonar o posto para disputar as eleições a deputado federal. “Foi quando a Nilza Valéria me pediu, pelo amor de Deus, para dar uma força”, lembra Oliveira. “Acontece que, além de produtora do programa, a Nilza é também minha mulher”.
O novo papel exigiu dele certo jogo de cintura. Pastor da igreja Batista, Oliveira quer ser ouvido por fiéis neopentecostais. “Por isso eu começo dizendo: ‘ a paz do senhor, meu irmão, minha irmã’. Não é algo natural para mim”, conta. “Tive que ouvir muita música gospel, que eu não escutava antigamente”. É o que o aproxima daqueles que, diz ele, estão no “chão da vida” – os mais pobres, que buscam nas igrejas um lugar de amparo. “Outro dia, recebi um áudio de uma ouvinte. Era uma senhora dizendo que nunca tinha pensado nessa história de direitos humanos”, conta. “‘Então a Bíblia fala disso?’,ela perguntou. É um gol para a gente”.
E a Bíblia fala sobre direitos humanos? Ele responde com uma história. Meses atrás, o pastor acompanhou a Frente Evangélica numa sequência de cultos pelo país. Numa igreja na periferia de Belém (PA), decidiu fazer uma provocação. No meio do culto, puxou um velho bordão da direita extremista: “Bandido bom é bandido…”, ao que os fiéis completaram: “morto!”. Oliveira sorriu. “Meus irmãos, minhas irmãs, eu sou evangélico desde sempre. Aprendi que bandido bom é bandido transformado pelo poder de Deus”.
Na avaliação dele, falta aos demais progressistas disposição para conversar nesses mesmos termos. “A esquerda precisa descer do seu pedestal para falar a linguagem do povo”.
Embora seja novato na locução, Oliveira se dedica, há tempos, a defender direitos pela ótica religiosa. Em 2016, publicou “A Bíblia e as cotas”, um livro em que reconta a fuga dos hebreus do Egito – onde eram escravizados – para defender medidas de reparação à população negra brasileira. Durante a pandemia, ministrou um curso de “leitura afrocentrada da Bíblia”.
Sua ambição é fazer a palavra – aquela da Declaração Universal dos Direitos Humanos – circular por diferentes suportes. Além do corpo-a-corpo dos cultos e do programa de rádio, a aposta mais recente da Frente de Evangélicos é uma revista impressa. A publicação também leva o selo “Papo de Crente”. Em pouco mais de 70 páginas, fala de reforma agrária (Lição 5 – “Se a terra é de Deus todos os seus filhos são herdeiros dela’); violência contra a mulher ( Lição 6: “Jesus abomina o preconceito e a violência contra a mulher”); e defende o Sistema Único de Saúde (Lição 4: “O médico dos médicos quer todo mundo com saúde”). A publicação também afirma que a Bíblia retrata Deus como um ativista de direitos humanos, “pois Ele defende aqueles que estão em situação de vulnerabilidade social”. ( quem quiser saber mais pode procurar pelo Salmo 146.7-9).
A revista é feita com apoio do Movimento dos Trabalhadores sem Terra (MST), e distribuída nos assentamentos. “É impressionante o número de evangélicos nos assentamentos”, diz o pastor.
Apesar de todo o esforço, Oliveira admite que há alguns tópicos que ainda interditam o debate. “Se eu chego falando sobre aborto, eu fecho o diálogo”, conta. A resistência, no entanto, não afasta o Papo de Crente de assuntos difíceis. “Na hora de votar, pense na vontade de Deus”, pediu Oliveira no programa daquele sábado, quando faltavam três semanas para o segundo turno das eleições. “Pense nos verdadeiros princípios cristão da solidariedade, da ajuda aos mais necessitados, aos que passam fome”.
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