Como funciona a Lei Maria da Penha? 3 perguntas para entender a Lei 11340/2006
Rafael Ciscati
11 min
Navegue por tópicos
Foto de topo: Maria da Penha Fernandes, a farmacêutica cearense que batizou a lei contra violência doméstisca (Agência Brasil)
Muito se fala nela, mas pouca gente a conhece: um levantamento divulgado no começo deste mês mostrou que, a cada 10 mulheres brasileiras, somente duas se consideram bem informadas a respeito da Lei Maria da Penha.
As conclusões são da 10ª Pesquisa Nacional de Violência Contra a Mulher, realizada pelo Instituto Datasenado e pelo Observatório da Mulher Contra a Violência. O levantamento ouviu 21808 mulheres, com 16 anos ou mais, distribuídas por todos os estados do Brasil. Descobriu que 56% das brasileiras acham que o país é “muito machista”. E que 25 milhões delas já sofreram violência doméstica provocada por um homem ao longo da vida.
>>Leia Também: Metade dos brasileiros conhece ao menos uma mulher vítima de violência doméstica
Sancionada em agosto de 2006, a Lei Maria da Penha tornou crime a violência doméstica e familiar contra a mulher. Definiu, ainda, que cabe ao poder público criar mecanismos para prevenir e mitigar um problema que é comum no Brasil.
Elogiada internacionalmente, a Lei Maria da Penha foi proposta por grupos da sociedade civil organizada, e só entrou em vigor depois de anos de debate. Abaixo, Brasil de Direitos explica como a legislação funciona, e conta o que mudou desde que a lei foi sancionada.
>>Veja também: O que é violência obstétrica
Como surgiu a Lei Maria da Penha?
A Lei 11.340/2006 leva o nome da farmacêutica cearense Maria da Penha, que por anos foi vítima da violência provocada pelo ex-marido, o economista Marco Antônio Heredia Viveiros. Em 1983, enquanto Maria da Penha dormia, Viveiros lhe deu um tiro nas costas. Ela ficou paraplégica. Apesar de condenado repetidas vezes, o agressor continuou em liberdade.
Quase duas décadas depois, em 2001, o caso de Maria da Penha levou o Brasil a ser condenado pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos. O órgão, vinculado à Organização dos Estados Americanos (OEA), entendeu que o país era omisso e negligente no combate à violência doméstica. “Trata-se de uma tolerância de todo o sistema que (…) alimenta a violência contra a mulher (…), não havendo evidência socialmente percebida da vontade do Estado, como representante da sociedade, para punir esses atos”, escreveu a Comissão à época.
A Comissão não tem poder para punir Estados-membros ou impor suas decisões. Mas uma condenação internacional pode gerar embaraços diplomáticos. Na ocasião, a Comissão recomendou que o país indenizasse Maria da Penha. E que criasse políticas públicas para combater e prevenir a violência doméstica contra a mulher.
Ao longo de dois anos, um grupo de seis organizações do terceiro setor se debruçou sobre a legislação brasileira. Eram elas as ongs CLADEM/Brasil (Comitê Latino-Americano e do Caribe para a Defesa dos Direitos da Mulher); CEPIA (Cidadania, Estudo, Pesquisa, Informação e Ação); CFEMEA (Centro Feminista de Estudos e Assessoria); Instituto Nacional para a Promoção da Equidade de Gênero; THEMIS (Assessoria Jurídica e Estudos de Gênero) e Advocaci (Advocacia Cidadã pelos Direitos Humanos).
O consórcio examinou projetos de lei que estavam em tramitação e analisou toda sorte de referência bibliográfica para elaborar uma minuta de lei – uma espécie de esboço do que seria uma lei contra a violência doméstica. Esse primeiro rascunho passaria por outras tantas rodadas de discussão e audiências públicas até ser aprovado pelo Congresso em 2006.
O que diz a lei Maria da Penha?
Já de saída, a lei afirma que é responsabilidade do Estado coibir a violência praticada contra mulheres nos contextos doméstico e familiar. Essa foi uma novidade importante: até a promulgação da Lei Maria da Penha, não havia legislação no Brasil sobre violência doméstica. Ocorrências de agressão familiar eram tratadas como pequenas causas: casos de menor complexidade, que poderiam ser encaminhados em Juizados Especiais – aqueles que se encarregam de infrações de menor potencial ofensivo.
“As agressões domésticas correspondiam a 70% dos casos levados aos juizados especiais criminais. E não eram punidos com prisão. Lá, o Judiciário buscava conciliar as vítimas com os agressores para resolver os conflitos. Não só se criava um conflito legislativo como se contribuía para naturalizar ainda mais a violência doméstica”, disse Leila Linhares Barsted, coordenadora executiva da ONG Cepia, em uma reportagem publicada pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) em 2018.
>>Leia também: aborto – criminalização gera mais de 2 mil processos em oito anos
A lei de 2006 dá o devido peso à violência que acontece dentro de casa (ou entre pessoas que mantêm algum laço de afeto). E diz que, longe de ser uma questão privada, é dever do poder público coibi-la e preveni-la.
No quesito prevenção, o texto afirma que a política pública deve ser capaz, por exemplo, de levantar dados e promover estudos que apontem qual a frequência da violência doméstica no Brasil, quais suas causas e consequências. Diz, também, que o Estado deve promover a educação e a conscientização, por meio de campanhas para o grande público e atividades em escolas.
(foto: Mídia Ninja)
Ao tratar da punição ao agressor e da assistência à mulher agredida, a lei cria inovações:
Penas mais severas: Até ali, a pena para quem cometesse violência doméstica podia variar de 6 meses a 1 ano de prisão. Havia também a possibilidade de ela ser substituída pelo pagamento de multa, doação de cestas básicas ou prestação de serviços comunitários. A partir de 2006, casos de violência doméstica passaram a ser punidos com maior rigor. A pena mínima foi reduzida para 3 meses de prisão, mas a pena máxima passou a 3 anos. A possibilidade de substituir a prisão por pagamento de multa deixou de existir.
Criação de juizados especializados em violência doméstica: a lei determinou que crimes desse gênero não eram competência dos juizados especiais criminais (aqueles que tratam de infrações menos graves). Nos Juizados Especiais de Violência Doméstica, a mulher pode tratar que questões cíveis (como um processo de divórcio) e criminais. A intenção é facilitar a vida da vítima, ao permitir que ela resolva todos os problemas em um lugar só.
Medidas protetivas: a lei também criou a possibilidade de o juiz decretar medidas protetivas de urgência. Medidas Protetivas são ações que podem ser adotadas para garantir a segurança da mulher agredida – como proibir o contato do agressor com a vítima, ou apreender armas de fogo que estejam sob sua posse. As medidas protetivas de urgência podem ser pedidas pela vítima ainda na delegacia, enquanto ela faz a denúncia. A justiça tem até 48h para decidir sobre seu estabelecimento.
A definição do significado de “violência doméstica”: a Lei Maria da Penha também avança ao explicar que “violência doméstica” não se restringe à agressão física. A lei também trata da:
- Violência psicológica – entendida como aquela que afeta o equilíbrio emocional e a autoestima da mulher. É o grito, o insulto, a ridicularização.
- A violência sexual – é aquela que fere os direitos sexuais e reprodutivos da mulher. Envolve, por exemplo, forçá-la a participar de práticas sexuais sem que ela queira; obrigá-la a abortar; ou impedi-la de utilizar métodos contraceptivos.
- A violência patrimonial – aquela que impede a mulher de ter acesso aos seus bens.
- Violência moral – a calúnia e a difamação.
A lei ainda explica que a violência doméstica pode ser praticada por qualquer pessoa que mantenha uma relação próxima com a mulher: pode ser seu namorado ou namorada (a legislação vale para pessoas de todas as orientações sexuais) , pai ou irmãos. Pode ser, inclusive, que a pessoa nem mesmo more na mesma casa que a vítima — mas mantenha uma relação íntima de afeto com ela.
>>Leia mais: o que é feminicídio
Como denunciar um caso de violência contra a mulher?
Hoje, existe mais de um canal de denúncia possível.
Em uma delegacia comum – A mulher que sofre violência pode procurar ajuda em uma delegacia comum. Lá, ela tem direito a atendimento prioritário. Na delegacia é lavrado um boletim de ocorrência, que deve ser enviado ao judiciário em até 48h. De posse dessa documentação, o judiciário pode decretar as medidas protetivas de urgência de que falamos no tópico anterior. Caso necessário, os servidores da delegacia devem encaminhar a mulher aos serviços de saúde, onde ela vai receber cuidados médicos e, se desejar, ter acesso a métodos contraceptivos.
A Lei Maria da Penha define que, durante todo esse atendimento, é essencial que a mulher agredida não seja revitimizada: a autoridade policial não deve obrigá-la a repetir seu relato várias vezes, por exemplo. Esse é um desafio: “Muitas vezes, o sentimento que as mulheres experimentam é de revitimização e frustração [ ao procurar ajuda policial]” disse a tenente-coronel Cláudia Morais, da Polícia Militar do Rio de Janeiro, durante um debate em 2022. “Já ouvi mulheres dizerem que sentiram mais raiva ao fazer a denúncia e serem mal atendidas pelos policiais”.
>>Leia também: num dos estados que mais mata mulheres, uma ativista sob ameaça
No mesmo debate, Regina Célia Barbosa, do Instituto Maria da Penha, opinou que falta preparo ao policial que atende a mulher vítima de violência. “Ela chega à delegacia e lhe perguntam: ‘a senhora tem provas?’ A mulher passa a se questionar se não está exagerando”.
Essa falta de preparo dificulta a procura das mulheres pelo serviço. A 10ª Pesquisa Nacional de Violência Contra a Mulher, realizada pelo Instituto Datasenado e pelo Observatório da Mulher Contra a Violência – que citamos no início dessa matéria – mostrou que procurar ajuda policial está entre as últimas atitudes tomadas pela mulher agredida.
Segundo o levantamento, 60% buscam ajuda da família. A seguir, 45% procuram ajuda na igreja; 42% recorrem a amigos. Somente 31% denunciam em uma delegacia comum e 22% procuram uma delegacia da mulher.
Nas delegacias da mulher – a primeira delegacia especializada no atendimento à mulher surgiu em 1985. A Lei Maria da Penha recomenda sua implementação pelo poder público. Nesses lugares, a mulher vítima de agressão encontra equipes treinadas para lidar com as particularidades de seu caso. Teoricamente, isso reduz as chances de elas serem revitimizada.
Um estudo publicado em 2022, realizado por pesquisadores da Fundação Getúlia Vargas, do Insper e da Ufrj, constatou que municípios que contam com delegacias da mulher registram número menor de feminicídios. O mesmo estudo, no entanto, destaca que o benefício não é homogêneo para todas as mulheres: mulheres pretas e pardas tendem a ser menos protegidas pela política pública. Nesse caso, o estudo sugere que as delegacias não podem funcionar sozinhas: para ser eficazes, é preciso que existam políticas complementares de educação e infraestrutura.
O bom funcionamento das delegacias de mulher esbarra em outro obstáculo: seu número reduzido. Levantamento da Revista Azmina registrou que, no país todo, existem 400 Delegacias Especializadas no Atendimento à Mulher — ou núcleos de atendimento especializado funcionando em delegacias comuns. Há mais de 5 mil municípios no Brasil. A revista disponibiliza um mapa que permite localizar a unidade mais próxima de você.
Pelo telefone – as denúncias também são acolhidas pela Central de Atendimento à Mulher, no número 180. O ministério dos Direitos Humanos informa que o número funciona 24h por dia. A página também mantém uma relação de números que funcionam mesmo que você esteja no exterior. E ressalta que qualquer pessoa pode fazer uma denúncia: “A denúncia de conhecidos e vizinhos, por exemplo, pode fazer toda a diferença entre uma agressão e um feminicídio”, afirma.
Também é possível encaminhar denúncias pelo Telegram – no aplicativo, busque por “Direitos Humanos Brasil”.
Para saber mais
Uma mapa que mostra as delegacias da mulher no Brasil
Uma página do Conselho Nacional de Justiça sobre a Lei Maria da Penha
Como funciona a Lei Maria da Penha? 3 perguntas para entender a Lei 11340/2006
-
Você vai gostar também:
Maria Edhuarda Gonzaga *
3 abolicionistas negros que você precisa conhecer
10 min
Rafael Ciscati
Mulheres são principais vítimas de violência, mas país pensa pouco em prevenção
11 min
Maria Edhuarda Gonzaga *
Peça de Abdias Nascimento chega ao Brasil 30 anos depois de publicada nos EUA
8 min
Entrevista
Ver maisPesquisa revela violências sofridas por mulheres negras na Amazônia paraense
7 min
Educação escolar indígena sofre com falta de políticas específicas, diz professor
6 min
Glossário
Ver maisAbdias Nascimento: quem foi o artista e ativista do movimento negro
8 min
O que é violência obstétrica? Que bom que você perguntou!
4 min