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Contribuição dos quilombos para o meio ambiente é invisibilizada, diz ativista

Rafael Ciscati

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Há quase 6 mil comunidades quilombolas em todo o Brasil, segundo cálculos dos próprios quilombolas. Dessas, ao menos 650 estão sob ameaça. Os riscos são provocados pela expansão do agronegócio — que disputa a posse das terras ocupadas por essas populações tradicionais —; por projetos de geração de energia, que provocam impactos socioambientais; ou por grandes projetos de infraestrutura. Na avaliação de Antônio João Mendes, coordenador executivo da Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq), a vulnerabilidade desses territórios a conflitos fundiários contrasta com a importância de protegê-los da degradação ambiental . “Sabemos que eles concentram importantes nascentes. E as pessoas estão de olho nesses espaços que, hoje, estão  protegidos”, afirma. “São territórios que reúnem riquezas, como minérios, e outros recursos que o mercado tenta explorar”. 

O alerta aparece em um manifesto distribuído pela Conaq durante a COP 27. Principal fórum internacional sobre mudanças climáticas, a Conferência das Partes das Nações Unidas (ou COP) reúne lideranças de todo o mundo até o próximo dia 18 em Sharm El-Sheikh, no Egito. A Conaq enviou dez ativistas para o evento. O objetivo, segundo a organização, é chamar atenção do mundo para os riscos enfrentados pelas comunidades quilombolas, e destacar o papel desempenhado por elas na preservação do meio ambiente. Na avaliação do grupo, os modos de produção tradicionais empregados por quilombolas preservam recursos naturais. “Temos certeza de que a nossa maneira de conviver com a natureza é capaz de solucionar a crise climática” afirma Mendes. “Mas a contribuição das comunidades quilombolas para o meio ambiente é invisibilizada”.

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Para Mendes, os desafios enfrentados pelos quilombos são reflexo de uma postura racista de governos e da sociedade de maneira geral, que nega a importância dessas populações para o debate ambiental, e as deixa vulneráveis. “Temos colocado as nossas vidas em risco atuando na linha de frente contra a ação predatória de atividades pesqueiras, de aquicultura, carcinicultura e maricultura; madeireiras; monoculturas; agronegócio; da indústria do turismo e da especulação imobiliária; da contaminação por agrotóxicos; da implantação de bases militares; pecuária; siderurgia; mineração e implantação de minerodutos; garimpo; projetos de petróleo/gás e implantação de oleodutos, entre outras”, afirma a organização no documento distribuído durante a conferência.

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Superar esse problema, diz o grupo, exigirá avançar no processo de titulação desses territórios. Uma vez concluída, a titulação estabelece a posse coletiva das terras ocupadas pelos quilombolas: o título é emitido em nome da associação que representa o quilombo, e não em nome de particulares. Mendes acredita que a relação estabelecida entre os quilombolas e suas terras pode apontar caminhos para a elaboração de políticas ambientais: “Para nós, a terra não tem valor de mercado – é algo que precisa ser protegido para garantir nosso futuro”, afirma. Além de defender a titulação de quilombos, os planos da Conaq na COP incluem pressionar por maior financiamento para projetos que combatam as consequências da crise climática.

 

Brasil de Direitos: Em 2021, a Conaq enviou duas pessoas para a COP 26, em Glasgow. A delegação enviada para o Egito é muito maior, chega a 10 pessoas. Por que vocês decidiram aumentar sua presença no evento?
Antônio João Mendes: Sempre soubemos da importância de estar nesse espaço. Infelizmente, a situação financeira e as articulações nunca permitiram ter mais de três quilombolas numa mesma COP. Na última edição, tivemos duas pessoas, mas com muita dificuldade financeira. O custo de trazer dez pessoas é alto, e o movimento quilombola não tem grande adesão social. As pessoas veem as comunidades quilombolas simplesmente relacionadas à questão étnica. Aos poucos, conseguimos visibilizar o quanto as comunidades quilombolas são importantes para a preservação do patrimônio ambiental e cultural do país. Nos nossos princípios, compreendemos que nossas comunidades não existem sem a natureza. Para nós, a terra não tem valor de mercado – é algo que precisa ser protegido para garantir nossos futuros. Temos certeza de que a nossa maneira de conviver com a natureza é capaz de solucionar a crise climática. 

As comunidades quilombolas são pouco ouvidas no debate ambiental? Por que isso acontece?
Isso é reflexo do racismo estrutural, do racismo como existe no Brasil e que impede as pessoas de valorizar as comunidades quilombolas e reconhecer seu papel histórico. Nós, negros e quilombolas, não somos bem vistos no Brasil. A questão quilombola não tem apelo social. Nos tratam  como se estivéssemos aqui de favor, como se não fossemos bem-vindos. A contribuição dos quilombolas para a preservação ambiental foi deliberadamente invisibilizada. Quando a gente fala, por exemplo, em Amazônia: as pessoas não acreditam que têm quilombo lá. Quando se fala em apoio ou financiamento, não se vê a população quilombola como alvo dessas ações. No entanto, a Amazônia, como todo o Brasil, tem mais de 50% da sua população negra. E lá, os quilombolas também preservam seus territórios tradicionais.  Nossos territórios quilombolas foram estrategicamente escondidos por nossos ancestrais em locais isolados, tanto em função do processo escravagista mas também porque eram terras de difícil produção. Nosso povo deu a volta por cima: pegou as terras que, naquele momento, ninguém queria e cuidou.  Hoje, sabemos que esses territórios concentram importantes nascentes. As pessoas estão de olho nesse espaço que, hoje, é o que tem de protegido. São territórios que concentram riquezas, como minérios, e outros recursos que  as pessoas  — que o mercado, o capital — tenta explorar. 

No manifesto distribuído na COP, vocês destacam que as comunidades sofrem ameaças… 
Sim. Nesse bojo, se destaca a questão territorial quilombola. A titulação de territórios quilombolas livra esses lugares da especulação fundiária. Depois de todo o processo de titulação, os territórios passam a ser coletivos. E, segundo a lei, são inalienáveis. Não podem ser doados ou vendidos. Por causa disso, sofremos muitos ataques. Do Congresso, de políticos locais e do sistema econômico. Tentam, de toda maneira, fragilizar a legislação, tirando nosso direito de permanecer nos territórios. Quando não tentam fragilizar nossas instituições normativas, sufocam os territórios quilombolas tirando recursos que viabilizem a regularização fundiária. 

A presença da Conaq na COP tenta inverter essa situação e destacar as contribuições dos quilombos para a proteção do meio ambiente. Tem funcionado?
Aos poucos a gente vem conseguindo visibilizar o quanto as comunidades quilombolas são importantes para a preservação do patrimônio ambiental e cultural do país. Os dados já apresentam isso com uma certa facilidade. Antes, as pesquisas sobre preservação ambiental não consideravam o recorte quilombola. Mas temos informações qualificadas que nos permitiram ganhar relevância nessa pauta. Por meio do Cadastro Ambiental Rural Quilombola, dos levantamentos  feitos pelo próprio ministério do Meio Ambiente e das pesquisas desenvolvidas pela Conaq, ficou evidente o quanto os territórios quilombolas estão preservados. Com essas informações, conseguimos articular parcerias para dizer: “nós estamos aqui. Nós estamos preservando”. Essa visibilidade ainda é pequena, diante de tudo o que precisa ser construído. Mas demos passos importantes. Tanto que, hoje, temos salas temáticas na COP sobre racismo ambiental. Um tema pouco conhecido no Brasil. Propositalmente, as pessoas não querem falar sobre isso. E não falam porque é cômodo, para alguns, não reconhecer os valores da população negra e quilombola no país. 

As comunidades quilombolas são afetadas pela crise climática?
A gente percebe o aquecimento global nos tempos diferentes das chuvas. Há aquelas regiões em que chovia muito, e hoje não chove mais. Outras onde as chuvas começavam em novembro, e agora só começam em março. Lugares onde já não há água suficiente para plantar. Sobretudo nas regiões de Cerrado, percebemos como o plantio de eucalipto próximo das comunidades quilombolas fez secar as nascentes. Por mais que tentemos preservar, os danos provocados por atividades externas afetam, diretamente, nossas vidas. 

Você destacou que projetos quilombolas recebem pouco financiamento. Na COP 27, um dos debates centrais é o do financiamento de ações que mitiguem os danos causados pela crise climática. Essa é, também, uma das demandas da Conaq no evento?
Sem dúvida. Entendemos que, para se fazer preservação, é essencial a manutenção desses povos em seus territórios. Não tem como falar sobre preservação ambiental sem falar de pessoas. Uma coisa é fato: quem degrada, quem queima, são as pessoas. Mas quem cuida são também algumas pessoas específicas. Essas pessoas que cuidam precisam de meios para garantir sua permanência. Para termos nascentes que mantenham os rios com água, esses povos precisam estar lá, preservando. As pessoas, aqui na COP, falam muito da Amazônia. Não falam da Caatinga e dos demais biomas. Nada de Mata Atlântica, Cerrado, Pantanal. Uma coisa que nos preocupou muito é que a Amazônia é o pulmão do mundo. Mas ele não funciona se os outros biomas não forem preservados. Se esses outros biomas forem degradados, a destruição ambiental vai avançar em direção à Amazônia. Não podemos esquecer dos demais biomas para que a Amazônia  não vire foco de investimentos destrutivos. Para que haja essa proteção, as pessoas precisam estar lá. Nós, quilombolas, estamos em todos esses biomas e somos capazes de protegê-los. Sabemos que precisamos fazer isso em nome das futuras gerações. 

 

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