Débora Silva, das Mães de Maio: “Ser pobre não é crime”
Recentemente premiada como atriz, a ativista fala ao Fórum Grita Baixada sobre racismo, violência de Estado e um possível redesenho da esquerda
Fabio Leon
18 min
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Foto de topo: reprodução Facebook
Entre os dias 12 e 19 de maio de 2006, o Estado de São Paulo conviveu com a maior onda de atentados promovida por uma organização criminosa que atua dentro e fora das prisões. O estopim teria sido uma resposta a decisão do governo do Estado de São Paulo de isolar líderes da facção com o objetivo desarticulá-la, colocando-os em presídios de segurança máxima. Estudo da ONG Justiça Global aponta que a corrupção policial também teria sido um dos motivos. O que se seguiu foi uma onda de ações orquestradas que resultou em rebeliões em vários presídios paulistas ao mesmo tempo, além de queima de ônibus, depredações de patrimônio público e privado, roubos a bancos e ataques a agentes de segurança do Estado.
Em meio a esse cenário, operações nas favelas e periferias foram montadas às pressas para encontrar células da facção. Em uma dessas incursões, Edson Rogério Silva dos Santos, que trabalhava como gari na Baixada Santista, foi tratado como “suspeito” pela polícia, por causa de sua cor e classe social. Era negro e pobre. Os policiais o abordaram, verificaram seus documentos e Edson foi liberado: para ser executado logo em seguida. Edson foi alvejado enquanto pilotava sua moto.
Desde aquele dia, sua mãe, Débora Silva, vive para honrar a memória do filho. O movimento Mães de Maio, liderado por ela, surgiu naquele mesmo ano, depois que ela resolveu procurar outras mães que se reergueram para lutar por justiça e para não deixar a morte dos filhos em vão. Calcula-se que 505 civis foram mortos pela polícia ao longo daquela semana. Débora atribui a morte do filho a PMs e entende que houve uma motivação racial. Em 2013, o Governo do Estado de São Paulo estabeleceu o 12 de Maio como o Dia das Vítimas do Estado Terrorista brasileiro – Dia de Luta das Mães de Maio.
Em 2018, ela participou do II Encontro Estadual das Mães Vítimas da Violência, organizado pela Rede de Mães e Familiares Vítimas da Violência de Estado da Baixada Fluminense e pela Rede de Comunidades e Movimento Contra a Violência, com apoio do Centro de Direitos Humanos de Nova Iguaçu e o Fórum Grita Baixada. Naquele momento, Débora apoiou a articulação e a implementação de uma Semana das Vítimas da Violência de Estado específica para a Baixada Fluminense. Em 2019, a prefeitura de Nova Iguaçu inseriu no calendário oficial da cidade a “Semana de Luta de Mães e Familiares Vítimas da Violência”, a ser realizada anualmente sempre na última semana do mês de março. A inserção dessa semana foi resultado de uma estratégia de proposições conjuntas elaboradas pela Rede de Mães e Familiares Vítimas da Violência de Estado da Baixada Fluminense e Fórum Grita Baixada.
Recentemente ela ganhou um prêmio como atriz coadjuvante no filme “Mãe”, dirigido por Cristiano Burlan, no festival de Málaga, na Espanha. O filme segue a jornada de Maria, migrante nordestina e vendedora ambulante em busca de seu filho Valdo, supostamente assassinado por policiais militares durante uma ação na vila onde mora. Para descobrir o paradeiro do filho, Maria enfrenta diversas adversidades.
Fórum Grita Baixada: Em abril, você recebeu um prêmio como atriz coadjuvante no filme “Mãe”, dirigido por Cristiano Burlan, no festival de Málaga, na Espanha. Como foi essa experiência?
A experiência que nós tivemos de contracenar nesse filme foi real, muito gratificante porque foi de quebrada para quebrada. O filme vem num contexto geral em que o Estado é muito presente nas violações de Direitos Humanos dentro da nossa quebrada, da nossa favela e periferia. Quando a gente faz esse contexto de visão, traz a periferia para além do cinema, percebendo o quanto ele é uma porta, uma ferramenta importante que o sistema há de temer perante a atrocidade que ele comete contra nós e nossos filhos. Uma negação de direitos que são garantidos em nossa Constituição e são violados. A cada 1 minuto, um jovem negro é executado em nosso país. As autoridades, junto com esse sistema racista, e com as tintas de suas canetas que nunca secam, deveriam, junto com as instituições, zelar pelo bem maior do brasileiro que é a vida. Então para nós, foi de uma importância muito grande. E a coragem do Cristiano Burlan de me conduzir para o desfecho tão importante que é trazer a luta das mães na base da pirâmide. As mães têm o dever de parir uma nova sociedade no Brasil e tirar essa cultura do ódio de que bandido bom é bandido morto.
Débora Silva: Desde 2006, quando surgiu o coletivo Mães de Maio, assistimos a ascensão, na esfera federal, de dois governos populares; um de centro-direita, através de um golpe midiático-empresarial e judicial; e um declaradamente de extrema direita. O Brasil é um filho difícil de cuidar?
O Brasil é uma pátria negra em que nem todos os brasileiros estão dormindo em berço esplêndido. O berço esplêndido geralmente é para brancos de classe média alta. As leis são conduzidas por eles contra nós negros. O Brasil é um filho difícil de cuidar quando o poder do desenvolvimento, que só se baseia no olhar dos gestores perante esse gigante, faz com que não enxergue que a pátria é negra. É uma pátria que não se declara como uma democracia racial, onde nós pobres, negros moradores de favela e de periferia, que construímos esse país através do tráfico dos escravizados da África, não somos colocados no alto da pirâmide. Não há uma reparação à altura do que merecemos. Então, os brancos nos golpeiam a cada minuto. Nos golpeiam com a ideologia que os portugueses colocaram quando invadiram nosso país. Tivemos, em 2006, o maior golpe da história da democracia branca depois do fim da ditadura. Nós estamos aqui para dizer que o maior massacre da história contemporânea, aconteceu num espaço muito curto de uma semana, de 12 a 19 de maio, onde o partido que cometeu o golpe também estava no poder em 2006 no Estado de São Paulo. Esse golpe, colocando em xeque a democracia, resultou em mais de 600 corpos numa vala comum sem ter direito à justiça. Os inquéritos sobre os assassinatos desses mais de 600 jovens não têm resposta. E é uma resposta que tantas mães almejam. Nossa pátria é uma mãe preta. E é preciso um levante para que essas mães tenham o protagonismo dessa luta pelo fim da ditadura nas favelas e periferias. Para parir uma nova sociedade e um novo Brasil. Temos que escancarar para o mundo que somos um país genocida, de que temos um poder podre que coloca a economia em primeiro lugar, mas não os seres humanos. É nesse contexto que nascem as Mães de Maio. Um levante que mexeu com as estruturas dos movimentos sociais, carregou esses movimentos para as ruas, fortificou em todos os Estados para que as mães fossem para as ruas sem ter tempo de ter medo, mas de reivindicar uma nova democracia racial para que todos nós sejamos iguais perante a Lei e ao Direito tão negado para essa camada da população tão criminalizada pelo poder público.
Com tantas contradições, dentre elas alguma dificuldade em lidar com questões acerca de pluralidades e complexidades, inclusive no âmbito racial, você acha que a esquerda brasileira tem condições de restabelecer seu papel de protagonismo no cenário político nacional?
A esquerda teve 14 anos nesse cenário. Ela avançou em várias políticas públicas, mas a esquerda para poder resolver o problema da desigualdade em nosso país, precisa ser redesenhada. Não cometer os mesmos erros nesses 14 anos, pois ela (a esquerda) é responsável pela manutenção da militarização de nossas vidas. Essa esquerda que passou pelo sistema punitivo do Estado brasileiro ditatorial não observou que eles deixaram uma polícia militarizada, que zela pelo patrimônio público, privado, e para reestabelecer a ordem. Nós nos perguntamos, mas que ordem é essa? A desordem começa lá em Brasília. Com os políticos que ocupam suas cadeiras e não veem a olho nu que nós temos uma Constituição de 1988 pela qual zelada. Os políticos que fatiam a nossa Constituição quando eles fazem uma Lei Antiterrorismo que respinga nos movimentos sociais de base que fazem a luta pelos Direitos Humanos, como moradia digna, saúde, educação, segurança pública e o direito à vida. Temos um país analfabeto político onde os políticos só enxergam as favelas e periferias de 4 em 4 anos. E depois nos abandonam. Dão migalhas para nós e não é mais época de achar que um salvador da pátria vai resolver essas questões porque não resolveu em 14 anos. Se ela não redesenhada, a esquerda não vai alcançar o que tanto a gente almeja enquanto movimento Mãe de Maio. Nós fomos reconhecidas, pela esfera federal, como mães lutadoras pelos Direitos Humanos. O caminho dos Direitos Humanos pra nós está fragmentado pelos cargos de QI (Quem Indica). A dignidade humana não cabe nos Direitos Humanos pregados em nosso país. A esquerda precisa ser redesenhada para não dar tempo de se chocar um novo ovo da serpente. Eles deram oportunidade para a serpente nascer e também nascer os seus filhotes. Quando falamos que a democracia vem camuflada, é uma democracia que não serve para a maioria que nós somos: negros, pobres, moradores de favela e periferia. Essa democracia precisa ser racial, de classe para podermos alcançar a desigualdade em nosso país. A gente percebe que a esquerda não está preparada para fazer essa transformação porque não conseguiu fazer o que deveria ter feito em 14 anos no cenário federal. O remédio para nossa esquerda é construir com a gente, coletivamente. Não aceitamos nada pronto. Ouçam as Mães. Ouçam as favelas e periferias. Nós não somos o problema, somos as soluções.
A senhora disse numa entrevista ao site da ONG Artigo 19 que “nós nunca vamos aceitar que um repórter, um veículo de comunicação que se propõe a fazer uma matéria ou uma reportagem conosco tire palavras da nossa boca que não tenhamos dito, porque esse também é o papel da mídia ‘bandida”. Isso já aconteceu com você? Descreva a situação
Quando a gente fala da mídia bandida, estamos nos referindo a mídia que, em 2006, cobrou respostas do Estado sobre os ataques que estavam acontecendo em SP. Rotulou como ataques de uma facção criminosa uma retaliação por parte do Estado, negando a participação do Estado nesses crimes. Desde o momento que essa mídia nos procura, ela também afirmava (defendia) esse contexto de ataque (da organização criminosa). Ela não falou da retaliação das forças policiais. Então rotulamos essa mídia de mídia bandida, comercializada, empresarial, que só coloca no viés de suas matérias o que os seus patrocinadores querem. Nós queremos uma mídia democrática. Não que o jornalista seja obrigado a lutar para trazer uma matéria de ponta, muitas vezes colocando sua vida em risco. O problema é que o jornalista constrói seu trabalho, traz a informação, mas os meios de comunicação desinformam. Eles cortam a nossa fala ou colocam palavras em nossa boca sem a gente ter se pronunciado. Nós fizemos esse papel muito bem feito em maio em 2006. Nós exigimos que a mídia fale tudo que nós Mães de Maio colocamos pra fora, nós somos produção de conhecimento, estamos dentro da situação e não podemos admitir maquiarem as matérias e repórteres que permitem fatiar as matérias pra depois cair no conformismo. Nós fazemos formação nas universidades, dizendo para os estudantes de jornalismo que eles não podem ser escravos dos veículos de comunicação. O diploma não vai construir o caráter dessas pessoas, ele vem de berço. Então, eles precisam se esforçar para trazer a história 100% verídica. A gente não pode cobrar respostas apenas quando há ataques a bancos, a empresas de transporte público, como aconteceu em 2006. Nós tínhamos que saber sobre os crimes, quem é que morreu. Nossos filhos morreram há 16 anos como suspeitos, mas tinham nome, sobrenome e residência fixa. Eles ficaram rotulados como se fizessem parte de uma guerra que não era deles. A mídia não trouxe para essa sociedade que o Estado estava promovendo uma guerra de achaques contra familiares de pessoas que estavam no sistema prisional. Os crimes de maio não foram contados pela mídia. Os fatos e o desfecho desses crimes foram maquiados pela mídia. Ela não tem o direito de tirar uma vírgula do que nós pronunciamos. A verdade que alimenta a nossa luta, a nossa sobrevivência é a mídia alternativa.
Um processo que se verifica com certa frequência, infelizmente, é quando mães de vítimas da violência de Estado se propõem a fazer, elas mesmas, uma espécie de investigação paralela que deveria ser de responsabilidade das autoridades policiais. O que pode ser feito para que mais esse fardo deixe de ser naturalizado?
Essa pergunta que você faz é bem provocante. Nós temos um histórico muito desolador porque hoje nós somos pesquisadoras reconhecidas dentro da academia, com a nossa produção de conhecimento. São as mães que procuram as provas de um crime contra a vida, de uma prisão arbitrária, forjada, de abuso de autoridade, de uma tortura, de um desaparecimento forçado. Quem inicia as investigações são as mães. Deveria ser a polícia, o Ministério Público. O Ministério Público é o causador do sofrimento dessas mães. Em 2006, o promotor público que nos atendeu disse que nós é que teríamos de fazer as nossas próprias investigações. E nós fizemos isso! Nós pedimos 5 eixos de investigação: 1) Quantas viaturas estavam rodando na hora da operação? 2) Quem eram os policiais? 3) Que tipo de armamento eles usaram? 4) Quantos projéteis foram deflagrados? 5) Qual o percurso feito pelas viaturas? Nós sabíamos que os policiais entregavam ao Batalhão, ao final de suas rotinas, uma planilha com essas informações. Então descobrimos que haviam nove policiais, duas viaturas da Força Tática e mais uma viatura descaracterizada, um gol, que servia de apoio na operação. Mas pra nossa surpresa, consta na planilha que nenhuma dessas viaturas abordou meu filho no posto de gasolina onde ele foi morto. Esses policiais que abordaram meu filho, são os mesmos que o executaram. Os depoimentos dos nove policiais eram todos iguais! Eu questionei o Ministério Público sobre isso, mas a promotoria afirmou que o escrivão não teve o cuidado de colher todos os depoimentos. Ele usou o depoimento de um policial da equipe e depois só trocou os nomes. A promotoria não tem interesse nenhum em fazer o controle do que esses policiais fazem na rua. Quando encontramos o corpo do meu filho no IML do hospital lá estavam o contra-cheque e a carteira de trabalho sujos de sangue. Ele ser registrado em carteira não significa nada. Meu filho foi abordado num posto de gasolina, foi dispensado e quando ele saiu com a moto, ele foi executado logo em seguida. Eu e outra mãe conseguimos provar a boa conduta que ele tinha na empresa, mas não adiantou. Depois, nós vimos a coisa mais bizarra que um promotor poderia aceitar. A polícia judiciária investiga a vida da vítima, mas não os algozes de nossos filhos. Depois pediram o arquivamento do inquérito do meu filho. O promotor ainda disse que “a incansável mãe não teve como provar que o filho dela foi assassinado por agentes do Estado ou pelo crime organizado”. E aí fica a pergunta: o que uma mãe precisa fazer pra envergonhar esse sistema judiciário? Quem é o bandido? Eu fiz umas perguntas bem provocativas para um desembargador do Tribunal de Justiça aqui de São Paulo, com quem fizemos um debate, na Rádio Trianon Masp. As respostas dele estavam me causando um incômodo. Eu perguntei pra ele se ele tinha o índice de pessoas classe média que são presas e ele disse que não tinha. E perguntei “por quê?”. Aí ele respondeu que os advogados dessas pessoas sempre encontram brechas na lei. Aí perguntei mais uma vez: que brechas? Ele não soube responder. Ai eu fiz uma outra provocação: “seria brecha na lei ou brecha no bolso?” Aí ele pediu pra retirar porque ele não tinha condições pra fazer o debate. As autoridades tem tecnologia e inteligência pra desvendar esquemas de lavagem de dinheiro, mas não existe esse mesmo esforço para solucionar crimes contra a vida. A polícia não tem um aparato pra fazer essas investigações, não tem uma perícia de qualidade, ela não é independente. Os peritos criminais não dispõem de tecnologia para solucionar os crimes contra a vida. Por isso é que no Brasil menos de 8% dos crimes de morte são resolvidos. Não há interesse em se fazer esse tipo de investimento na polícia. Essa discussão está nos debates das Mães de Maio. Nós somos, inclusive, pesquisadoras associadas ao CAAF (Centro de Antropologia e Arqueologia Forense) da Universidade Federal de São Paulo (UFSP). Só uma perícia independente vai acabar com a impunidade em nosso país. É nisso que acreditamos.
Como a senhora cuidou da sua saúde mental durante todos esses anos?
A saúde mental é a base da pirâmide de uma luta. Pela impotência que a gente acaba sofrendo, pela não devolutiva de uma justiça que deveria ser negra, porque não temos uma democracia negra, racial em nosso país. O cuidar de nossa saúde mental é bem complicado por causa da falta física de nossos filhos. Nos quatro cantos da casa a gente procura resposta. Nós conseguimos conviver com essa ausência física. E também com a negação de uma justiça. Uma justiça que recai sobre nossos filhos para puni-los. O tratamento indicado pelo próprio psiquiatra do SUS são as mães. É nós por nós. Nós fazemos nosso próprio tratamento psíquico dentro da luta. Nós damos a mão uma para as outras, pois só uma mãe sabe a dor da outra. Sentir muito todo mundo sente, mas estamos presos a essa dor pelo resto da vida. É uma dor insuportável. A luta é que fortalece a nossa mente para que outras mães não sintam a nossa dor. Para que esses jovens não sejam perseguidos. Todo o povo brasileiro tem de ter respeito pela luta das mães. Porque essas mães estão na mira do fuzil. Nós precisamos de apoio, nós queremos que as pessoas nos deem colo. A maioria que não vem pra luta morre de depressão. A impunidade desse sistema é tão perversa que elas acabam adquirindo doenças oportunistas como câncer nos órgãos reprodutores, mama, útero ovário, trompas. Portanto, escutem as mães. Esse é o recado que as Mães de Maio trazem pra Baixada Fluminense, uma região que não é diferente da nossa Baixada Santista. Mas é uma região que resiste a toda mazela imposta pra ela. Quando ocupamos a Baixada Fluminense pra apoiar essas mães nós sabíamos que estávamos com as nossas “irmãs siamesas”. Nós precisamos da dignidade humana pra sobreviver.
Publicado originalmente no site do Fórum Grita Baixada
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