De Maria Bonita a Maria da Penha, livro resgata história de resistência feminina
A psicóloga Dayse Marcello lembra casos de mulheres históricas, vítimas de violência, que enfrentaram as agressões para se tornar protagonistas
Fabio Leon
9 min
Navegue por tópicos
(…)”Mas é preciso ter força/É preciso ter raça/É preciso ter gana sempre/Quem traz no corpo a marca/Maria, Maria/Mistura a dor e a alegria”(…). As Marias retratadas nos versos de “Maria Maria”, de Milton Nascimento, serviram de alegoria para expor o sofrimento cotidiano de mulheres vítimas das mais diversas formas de violência país afora. Lançada em 1978, época sob a regência de uma ditadura civil militar, a canção enaltecia as virtudes da mãe do cantor e compositor, mas também era uma denúncia sobre as desigualdades de gênero, quando essa expressão era pouco conhecida naquele tempo.
Mas foi uma mulher negra, nascida na Baixada Fluminense, que redimensionou essas atrocidades para um outro patamar e que revelam, em detalhes, tantas outras “marias” que lutaram e lutam por reconhecimento, justiça e até pelo direito de viver. A psicóloga e escritora Dayse Marcello acaba de lançar o livro “De Maria Bonita à Maria da Penha” (Ed. Telha, 110 páginas), uma pesquisa que resgata a origem de mulheres históricas vítimas de várias formas de violência e que se tornaram símbolos de resistência.
Filha de Dona Rute e do Sr. Marcello, mãe do Cleber e da Daiane, Dayse acredita que criar filhos negros no Brasil, separada do marido, sem pensão alimentícia, estudando e trabalhando, e, ainda assim, conseguir vê-los vivos, pessoas de bom caráter, formados na universidade, empregados e enfrentando o racismo, dentre tantas outras formas de discriminação, seja talvez, o maior sucesso da minha vida.
“O Brasil é um país racista, palco de muitas injustiças e desigualdades e, portanto, um país perigoso para mulheres, mulheres negras e negros. Não pude evitar de ser ativista da causa de grupos historicamente discriminados como negras e negros, indígenas, mulheres, LGBTQIA+ entre outros. Sigo os passos de Maria Carolina de Jesus, a escritora que registrou suas frustações, indignações, sonhos e expectativas para cooperar com o surgimento de uma sociedade menos desigual e mais humana”, analisa Dayse.
No livro, ela investigou a vida de Maria Bonita, a rainha do Cangaço; que fugiu da violência doméstica e tornou-se companheira de Lampião, e Maria da Penha, a farmacêutica que lutou para que seu agressor fosse condenado e que dá nome à Lei que e estipula que todo o caso de violência doméstica e intrafamiliar é crime e deve ser apurado. A obra perpassa pela história das mulheres negras que acompanhavam D. Maria I, a Louca, que deram origem pejorativa da expressão “Maria vai com as outras”, e outras brasileiras como a cantora Ângela Maria, a escritora Maria Carolina de Jesus, e as personagens Maria Moura e Maria Chiquinha.
O seu trabalho como psicóloga a fez despertar sobre a violência sofrida pelas mulheres?
Sim. Quando eu penso no meu grupo de amigas, a cada três delas, duas já passaram por relacionamentos abusivos em algum momento de suas vidas e uma já vivenciou episódios de violência dirigida a ela e/ou a alguma mulher do convívio dela. Essa dura realidade me apontou um caminho a seguir: ajudar a transformar essa realidade social em que nós mulheres vivemos. No meu trabalho como psicóloga, essa realidade só ganhou mais força. Eu trabalhei com amiga agredida pelo marido, com marcas no corpo, depressiva e agindo como se nada tivesse acontecendo. Não pode ser desse jeito! Eu mesma vivenciei muitos assédios: moral, religioso, sexual. Precisei lidar com muitas situações de racismo, machismo e xenofobia. Atendi muitas pessoas marcadas por essas múltiplas violências que relato aqui. Passar por tudo isso passivamente, sem deixar um legado? Para mim, não tinha como.
Por que escrever um livro sobre mulheres históricas vítimas de vários tipos de violência?
Dialogar sobre as múltiplas violências direcionadas às mulheres em suas diferentes faixas etárias não é uma tarefa fácil, certo? Para tornar esse diálogo mais atraente e de fácil compreensão, resolvi trazer as experiências das “Marias do Brasil” e através da experiência de cada uma delas, resgatar inspiração e maneiras diferentes de como as mulheres de hoje podem enfrentar a dominação masculina e escaparem das ciladas machistas.
O que mais lhe impressionou, ao escrever o livro, sobre como a sociedade coisifica e objetifica a mulher?
O que mais me impressiona ainda é a constatação de que a sociedade ainda mantém influências sutis para manutenção da objetificação da mulher. Como exemplo disso, eu trato no livro sobre a música “Maria Chiquinha”, uma música infantil que foi um sucesso estrondoso entre o final da década de 1980 e início da década de 1990 (cantada pela dupla Sandy e Júnior). A música narra uma história de um casal onde o homem (Genaro) é ciumento e diz que se encontrar a mulher (Maria Chiquinha) com outro vai matá-la cortando-lhe a cabeça e “aproveitar o resto do corpo”. Infelizmente essa música, que foi sucesso nacional e internacional, não foi a única a ajudar criar uma geração de “Genaros e Marias Chiquinhas”. Existem centenas delas. Precisamos observar as influências aparentemente sutis que mantém a banalização da objetificação da mulher. Na mídia, nos filmes pornôs, nas músicas, nas telenovelas e muitas das vezes em obras literárias também. Tem um capítulo inteiro do livro dedicado a essa reflexão.
Como você avalia a legislação específica que se pretende prevenir atos violentos contra as mulheres? O que é avanço e o que ainda precisa ser feito?
À época de Maria Bonita, o código civil (1930), preconizava que a mulher era propriedade do homem. Isso formou uma geração de Marias submissas, cada uma a seu modo reagiu de uma maneira. Maria Bonita, por exemplo, separou-se do marido, desrespeitando o código civil, mas se uniu a um justiceiro, cangaceiro, para não sofrer retaliação. Outras não tiveram a mesma sorte, morreram ou mataram seus maridos abusadores. A legislação é necessária. A Lei Maria da Penha é um ouro que precisamos preservar. Existem falhas no cumprimento dela porque a política que executa a Lei tem suas falhas historicamente reconhecidas. Mas não podemos desqualificar a Lei. Eu tenho a esperança que tenhamos uma geração de “Marias” vivas, separadas e protegidas pela Lei Maria da Penha. Mulheres que não irão precisar pegar em armas para se livrarem de um relacionamento abusivo. Isso é um avanço considerável.
Fala-se muito sobre a masculinidade frágil. Não ser mais o protagonista absoluto das relações familiares e afetivas diz o que sobre o incômodo do “macho” ao ser um coadjuvante nessa contemporaneidade?
As mulheres não querem competir com os homens. Elas querem igualdade de direitos, respeito, amor e tratamento digno. Poucos homens alcançam essa compreensão, porque a sociedade está formatada para que esse homem não saia da posição machista e dominadora. Quando ele sai dessa posição, a exemplo do homem que fica em casa e cuida dos afazeres domésticos e dos filhos, ele é atacado em sua masculinidade com apelidos e frases sugestivas, tais como: “parece uma moça!”,“você tem estado meio estranho hein?!”. Quando acontece infidelidade por parte do homem, ele é incentivado a reconquistar essa mulher, como se ela tivesse a obrigação de lidar com suas “fraquezas”. Quando a infidelidade parte da mulher, este mesmo homem é incentivado a atacar, exterminar essa mulher para “preservar” sua masculinidade. É difícil para os homens lidarem com essa panela de pressão que fica sob fogo alto o tempo todo. São muitos reforços que este homem recebe para anular a humanidade da mulher e se colocar na posição dominadora e opressora.
Por que a justiça é machista?
A justiça tende a ser machista, porque historicamente vem sendo conduzida por homens machistas. A exemplo disso podemos lembrar que o código penal tem raízes profundas nos 10 mandamentos bíblicos e nas chamadas “Santas Inquisições”, os tribunais de influência cristã que queimou muitas mulheres com a alegação de serem bruxas e/ou prostitutas, apenas por não terem o estereótipo de “Maria mãe de Deus”. Não acredito que realmente a Justiça em si seja machista. O que precisamos é de mais mulheres e outras pessoas com consciência de humanidade, equidade e igualdade legislando para o povo. Dessa forma, gradativamente, a justiça será mais assertiva na garantia de nossos direitos. Creio que já estamos avançando, ainda que lentamente.
É difícil, para uma mulher, sair de um relacionamento abusivo?
Sim. O livro trata dessa complexidade. Existe um “amor” envolvido. Não nos cabe julgar este amor, mais precisamos ajudar essas mulheres a entenderem que este “amor” idealizado que foi introjetado nela pela sociedade, pode matá-la. No livro, eu trato do amor da Bela e a Fera. Linda história não é mesmo? Mais muitas mulheres são influenciadas por essa realidade e são destroçadas pela fera enquanto espera que ela vire um príncipe. É preciso todo um trabalho de sensibilização para que essa mulher deixe essa fera. Se liberte desse conto não encantado. Existe muito reforço da sociedade e da mídia em manter essa mulher nesse lugar de “salvadora” da relação complicada. Enquanto ela se mantém nesse lugar ela morre. Analisando hoje em dia, a frase “em briga da marido e mulher ninguém mete a colher” é atribuída para conservar a intimidade de problemas conjugais ou sempre houve uma simbologia de silenciamento carregada nela? Essa frase tem suas raízes do tempo em que a mulher quando casava se tornava propriedade do homem (código civil de 1930). Hoje vivemos na era Maria da Penha, a Lei. É necessário ajudar a mulher vítima de violência em relacionamento abusivo. Mas também é necessário ter prudência, saber como fazer. O livro tem um capítulo inteiro dedicado a esse aconselhamento para encorajar a sociedade ajudar as mulheres nessa condição.
Foto de topo: a escritora e psicóloga Dayse Marcello (reprodução: Facebook)
Você vai gostar também:
Cis e trans: qual a diferença dos termos?
3 min
Saiba o que pode e o que não pode em uma abordagem policial
19 min
4 escritoras lésbicas brasileiras que você precisa conhecer
3 min
Entrevista
Ver maisViolência policial : grupo propõe cortar verba da polícia para combater letalidade
7 min
Como é ser refugiado no Brasil? Que bom que você perguntou!
4 min
Glossário
Ver maisConsciência negra: qual a origem da data celebrada em 20 de novembro
6 min
Abdias Nascimento: quem foi o artista e ativista do movimento negro
8 min