Despejo Zero: o direito à moradia precisa ser respeitado
Decisão do STF que suspendeu despejos e remoções durante a pandemia de covid-19 vale até esta segunda, 31 de outubro. Movimentos pedem que seja prorrogada
Maura Cristina da Silva
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Foto: A ocupação Viva Jardim Julieta, na zona Norte da cidade de São Paulo, formada durante a pandemia. (Reprodução LabCidade)
Quase 1 milhão de pessoas correm o risco de ser despejadas em todo o Brasil. São 190 mil famílias – mais de 153 mil crianças – que estarão mais próximas das ruas caso o Supremo Tribunal Federal (STF) decida não prorrogar a decisão que, em 2021, tornou ilegais despejos e reintegrações de posse durante a pandemia de covid-19. A decisão é válida até esta segunda-feira (31). O fim do despejo zero, se acontecer, pode deixar uma multidão em situação de insegurança, sem ter onde morar. Mulheres, crianças e pessoas negras serão as principais prejudicadas.
>>Como a pandemia de covid-19 agravou a crise de habitação do Brasil
Movimentos sociais ligados à campanha Despejo Zero pedem que a medida seja prorrogada. Na nossa avaliação, ela deve durar até, pelo menos, junho do ano que vem.
A proibição dos despejos durante a pandemia respondeu a uma necessidade social evidente: com a crise sanitária deflagrada pela covid-19, muitas pessoas perderam seus empregos. Desde então, sabemos que o Brasil voltou ao Mapa da Fome e que mais de 60 milhões de brasileiros passaram a conviver com algum grau insegurança alimentar. Não sabem se terão alimento para suas famílias. Se falta dinheiro para comer, como esperar que exista dinheiro para pagar aluguel? Em todos os centros urbanos do país, a população que vive nas ruas aumentou. A crise é visível em São Paulo, em Salvador – cidade onde moro – e em tantas outras capitais brasileiras.
Existe a impressão de que a covid-19 ficou para trás e de que o momento mais agudo da crise foi superado. É uma impressão enganosa. Não bastam alguns meses para reconstruir um país. A crise social agravada pela pandemia não foi debelada. Há pessoas em vulnerabilidade que precisam ser protegidas. Pessoas que precisam de moradia digna.
Logo que a pandemia do novo coronavírus chegou ao Brasil, a principal recomendação para evitar o contágio era o isolamento. “Fiquem em casa”, diziam. E nós nos perguntávamos: “mas que casa?”. A crise habitacional brasileira, sabemos, não foi resultado da pandemia. O vírus agravou um problema que dura décadas. Em 2019, o déficit habitacional do Brasil chegou a 6 milhões de domicílios. Esse número revela um contrassenso: em grandes cidades, há milhares de prédios ociosos que poderiam virar moradia. Na capital paulista, por exemplo, são mais de mil imóveis subutilizados. Como explicar a existência de tantos prédios vazios quando há tanta gente sem ter onde morar?
Para enfrentar essa situação, nós nos articulamos. As movimentações pelo Despejo Zero no Brasil foram resultado do trabalho de centenas de movimentos sociais atuantes no país e fora dele. No Supremo Tribunal Federal, protocolamos, junto do PSOL, uma Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental – a ADPF 828. Em junho de 2021, tivemos nossa primeira vitória: o ministro Luís Roberto Barroso proferiu uma decisão liminar suspendendo despejos, remoções, desocupações e reintegrações de posse por seis meses. Ela seria confirmada pelo plenário da Corte em dezembro daquele ano.
Com a decisão do STF a nosso favor, ganhamos segurança. Calcula-se que , graças à ADPF 828, 151 mil pessoas foram protegidas de despejos forçados. Mesmo assim, à revelia do que a Corte determinara, despejos e remoções continuaram a acontecer. Em setembro desse ano, havia 35 mil famílias ameaçadas por ações de despejo.
A quem interessa colocar essas pessoas nas ruas?
Precisamos prorrogar o Despejo Zero até junho. Enquanto a decisão valer, temos um respiro. Mas esse é apenas um primeiro passo. Essencial, mas insuficiente. Num país de passado escravista recente, terra e moradia são signos de distinção social. Nossa abolição incompleta não deu direito à terra, nem deu direito à semente. Vivemos à mercê da especulação imobiliária, que enriquece poucos, enquanto deixa tantos sem ter onde morar. É por isso que nós, dos movimentos de moradia, promovemos ocupações. Prédios abandonados, terras improdutivas — temos que ocupar. Porque moradia é um direito!
Enquanto país, precisamos mudar essa lógica. Precisamos discutir, juntos e juntas, que tipo de sociedade queremos construir. Precisamos de uma sociedade em que a moradia seja entendida, verdadeiramente, enquanto um direito. E não como uma mercadoria cujo valor varia conforme as oscilações do mercado e os humores dos investidores. O caminho é longo. Os movimentos sociais, que há tanto tempo lutam por moradia, podem apontar vias para a construção dessa nova sociedade. Mas é preciso disposição para o diálogo. E é urgente o envolvimento de todos os cidadãos.
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