Navegue por tópicos
por Alan Leite, da coordenação do MST no Pará
Numa manhã de outubro de 2020, já no ponto alto da pandemia do novo coronavírus, quatro carros de polícia apareceram, sem aviso, no Acampamento Terra Cabana, no Pará. O acampamento fica na cidade de Benevides, perto de Belém. Já há seis anos, abriga 60 famílias do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). São famílias que tentam construir suas vidas e seus sonhos naquele pedaço de chão, onde praticam a agricultura familiar e onde construíram uma biblioteca. Naquela manhã, junto dos carros de polícia, vinha um oficial de justiça com uma ordem de despejo. Segundo aqueles homens, as famílias do Terra Cabana deveriam deixar a área. Na lei ou na marra.
Situações como essa se sucedem há anos no Pará. Durante a crise sanitária, as ameaças assumem um caráter especialmente cruel. Se forem expulsas de suas terras, para onde essas pessoas irão? Sem emprego, sem terra para cultivar e sem destino certo, ficarão expostas a um vírus mortal.
Tão depressa quanto puderam, os moradores do Terra Cabana se organizaram para resistir à reintegração de posse. Se manifestaram nas redes sociais e, apesar da crise sanitária, saíram de casa para ocupar, com faixas, a rodovia PA-391. Além disso, construímos estruturas de enraizamento no espaço. Montamos uma horta comunitária cuja produção de alimentos é toda direcionada à doação. Por ora, a reintegração de posse foi adiada.
Ameaça parecida paira sobre outras duas áreas no estado. É o caso do acampamento Dalcídio Jurandir, em Eldorado dos Carajás. Lá, vivem mais de 200 famílias há pelo menos 12 anos. Além da agricultura familiar, o acampamento tem estruturas bem consolidadas — como uma escola de ensino fundamental, onde as crianças podem estudar até o nono ano. As ordens de despejo não levam isso em consideração. A situação é semelhante no Helenira Resende e Hugo Chaves, dois acampamentos próximos um do outro.
Manifestação em outubro de 2020 contra a reintegração de posse do acampamento Terra Cabana (Foto: MST/Pará)
Por ora, temos conseguido adiar as reintegrações de posse. Há uma lei estadual que proíbe despejos durante a pandemia. Ela foi reforçada por uma decisão do ministro Luis Roberto Barroso, do Supremo Tribunal Federal (STF), que suspende despejos, remoções e reintegrações de posse por seis meses. Paralelamente, há um projeto de lei em discussão no Senado Federal que, se aprovado, pode barrar remoções e reintegrações de posse até o final de 2021. A pauta é impulsionada pela campanha Despejo Zero, que reúne organizações de todo o Brasil, e com a qual o MST colabora. Defendemos uma bandeira simples: a de que despejo durante a pandemia é crime.
Por enquanto, vamos driblando e adiando os despejos. Mas, é sempre assim: a gente barra e, meses depois, surge uma nova ordem de reintegração de posse. Isso desgasta as famílias. Elas sentem medo de perder tudo o que construíram naquele espaço. Há relatos de pessoas que não conseguem dormir. São famílias que vêm das favelas de Marabá, Eldorado dos Carajás, Parauapebas. Famílias carentes que tentam, nos acampamentos, construir algo. Quando os despejos acontecem, acaba um sonho.
A colheita das hortaliças no acampamento Terra Cabana. A produção foi doada à população que passa fome durante a pandemia (Foto: MST/Pará)
Todas essas terras, hoje ocupadas pela agricultura familiar, eram improdutivas antes da chegada dessas famílias. Com o boom do agronegócio, serão possivelmente destinadas à criação de gado para exportação, caso as reintegrações de posse sejam levadas a cabo. É uma lógica cruel: no Brasil do agronegócio, não há espaço para a agricultura familiar.
Parece não haver espaço, tampouco, para os sonhos dessas pessoas. O MST trabalha a partir da perspectiva da reconstrução. Quando surge um acampamento, seus moradores se movimentam para estabelecer laços com os institutos e organizações que atuam no local. Trabalhamos para alcançar conquistas coletivas. Constroem-se escolas e bibliotecas — nossos espaços de resistência. Quando ocorre um despejo, as pessoas ficam abaladas porque perdem seus bens. Mas não é só isso. Elas perdem, também, a identidade coletiva que construíram. Expulsas da terra, não têm para aonde ir nos municípios pobres ao redor. Por ora, enquanto a pandemia avança, o medo do despejo persiste. Assistimos ao sofrimento ser adiado.
Imagem de topo: os alimentos doados pela horta comunitária do acampamento Terra Cabana (Reprodução)
Despejos expõem famílias à covid-19 e destroem sonhos coletivos
-
Você vai gostar também:
Maria Edhuarda Gonzaga *
3 abolicionistas negros que você precisa conhecer
10 min
Rafael Ciscati
Mulheres são principais vítimas de violência, mas país pensa pouco em prevenção
11 min
Maria Edhuarda Gonzaga *
Peça de Abdias Nascimento chega ao Brasil 30 anos depois de publicada nos EUA
8 min
Entrevista
Ver maisPesquisa revela violências sofridas por mulheres negras na Amazônia paraense
7 min
Educação escolar indígena sofre com falta de políticas específicas, diz professor
6 min
Glossário
Ver maisAbdias Nascimento: quem foi o artista e ativista do movimento negro
8 min
O que é violência obstétrica? Que bom que você perguntou!
4 min