História


Combate ao racismo

Liderança do Kilombo Manzo fala sobre o racismo alimentar, que desvinculou seu povo da história de alimentos tradicionalmente africanos, e o processo de resgate desses pratos

Em BH, uma comunidade quilombola recupera suas tradições culinárias

Combate ao racismo

Em BH, uma comunidade quilombola recupera suas tradições culinárias

Liderança do Kilombo Manzo fala sobre o racismo alimentar, que desvinculou seu povo da história de alimentos tradicionalmente africanos, e o processo de resgate desses pratos

Escrito em 05 de Outubro 2023 por
Maria Edhuarda Gonzaga *

Durante a pandemia de covid-19, a organização quilombola Kilombo Manzo Ngunzo Kaiango se reuniu para distribuir cestas básicas à população periférica de Belo Horizonte, que enfrentava dificuldades financeiras para comprar alimentos essenciais. Um pouco depois do início das atividades, porém, Makota Kidoiale, liderança religiosa e articuladora do quilombo, começou a ser bombardeada por mensagens de Whatsapp. Eram dúvidas e reclamações das pessoas que tinham recebido os alimentos. Elas pediam que, nas cestas básicas distribuídas pelo projeto, viesse menos fubá. Ou que ele fosse substituído: a maioria não sabia que destino dar para aquela farinha fina, feita de milho. “Elas me diziam que sobrava muito e não dava para usar tudo para fazer angu”, conta Makota. Ela própria não conhecia muitas receitas. Foi então que sua mãe, Dona Efigênia Maria da Conceição, respondeu de pronto que havia muitas outras possibilidades para utilizar a farinha de milho. 

O acontecimento acordou Makota para um problema crescente na comunidade local: o afastamento cultural dos quilombolas de suas comidas tradicionais. O quilombo em que Makota vive está encravado na maior favela de Minas Gerais, o Aglomerado da Serra.  Reconhecido como remanescente de quilombo, é patrimônio imaterial da cidade. Para a liderança, tamanha proximidade com a cidade distanciou os quilombolas de algumas de suas tradições.  “As cidades vão crescendo e dominando todo o território quilombola. Isso obriga as famílias a se adequarem a um modo de vida baseado em sair todo dia para trabalhar porque não há terra para plantio e sustento próprio”. 



Acrescenta-se a essa nova maneira de viver as disputas territoriais e a demora de reconhecimento e titulação por parte do Estado. Esse conjunto mostrou-se um terreno fértil para o apagamento da memória alimentar das populações tradicionais. “Porque o ato de cozinhar passa a ser para um outro público, que não se preocupa muito com a identidade do alimento”, explica Makota. Ela conta que a culinária quilombola é mais preservada nas áreas rurais e no imaginário das mais velhas. Já os jovens, diz ela, pouco se aprofundam nessa relação ancestral com a comida. 

Nunca foi o caso da própria Makota. Nascida Cássia Cristina, ela é hoje conhecida pelo título religioso que, no candomblé, designa a liderança da comunidade religiosa. Traduzido para o português, significa “Pequena Mulher Que Ensina”.  Desde criança, ela conta que  já tinha dentro de si a vontade de manter viva a cultura alimentar da sua comunidade. Procurava as raízes das refeições presentes no seu cotidiano. “Toda a minha trajetória está muito ligada ao aprender para ensinar”, afirma. Uma celebração brasileira em particular lhe dava coceiras de curiosidade: a festa junina. 

Observava a comida caipira, como era vendida em Belo Horizonte, e perguntava às mais velhas a razão dela ser oferecida sem ligação com sua origem ritualística. “Questionava, porque sentia que aquele era um momento em que as comidas africanas eram ofertadas à mesa sem ser reconhecidas enquanto comidas africanas”, relata. Na tradição de terreiro em que cresceu, Makota aprendeu a ver os alimentos como instrumentos de cura e não apenas como uma forma de matar a fome ou comemorar uma data. “Costumamos falar que comemos nos quatro cantos: come meu corpo, come a minha ancestralidade, come o meu território e come a minha família. É o princípio básico das religiões de matriz africana.”

Foi com o propósito de resgatar receitas ancestrais esquecidas ou apropriadas que A Pequena Mulher Que Ensina foi escutar o que as matriarcas quilombolas tinham a dizer. “Comecei a entender que as mais velhas tinham uma relação com o fubá que nós já estávamos perdendo”. O fato de muitas delas não escreverem estimulou a comunidade a achar outras formas de preservar o conhecimento originário. 

A organização, então, angariou recursos por meio de um edital voltado para apoiar projetos de identidade visual na periferia de Belo Horizonte. O resultado da ideia foi o audiolivro “Pratos de Memória: receitas da nossa história”, que reuniu mais de dez receitas quilombolas e familiares no YouTube. Em um tom afetivo e nostálgico, a narração alterna entre instruir no preparo dos alimentos e relembrar os momentos em que eles eram feitos. “Quando estava morno, minha avó Dasdô colocava no prato, apertava na mão e nos dava para comer. Mais gostoso do que comer capitão era ser alimentada pela mão da minha avó”, recordou Makota ao descrever o capitão, prato feito com chuchu, fubá e alho. 

Ao tentar descobrir a história dos pratos derivados do milho, ela entrou em contato com um processo de desapropriação de diversas receitas. Originalmente pertencentes à cultura afroindígena do país, havia uma série de iguarias que, segundo ela, começaram a ser desassociadas logo nos nomes populares que carregam. “Existem vários alimentos que são produzidos com milho e fubá, mas que não tem os nomes dados pelos territórios pretos e dos povos tradicionais. Chamo isso de racismo alimentar.” 

A canjica, por exemplo, é um “alimento de tradição” oferecido a Oxalá: “Comemos para limpar o corpo e pomos na cabeça para descansar o pensamento”. A maçã caramelizada é ofertada à Pombagira, entidade conhecida por incentivar o crescimento da autoestima e ser auxiliadora na construção de relacionamentos saudáveis. “Talvez chamarem de maçã do amor seja até propício”, comenta risonha. Outro grão que deriva de um quitute junino desejado é o amendoim, base da paçoca. “A paçoca africana é feita com o piruá da pipoca [milho que não estoura], rapadura, amendoim e gengibre. É um alimento que chamamos de afroindígena porque havia a cultura desse alimento tanto no território brasileiro pré-colonizado quanto em algumas partes da África.”

A paçoca é tradicionalmente concedida ao deus Kitembo, entidade responsável pelas mudanças climáticas, pelo movimento da gestação e pelo desenvolvimento humano, em comemorações e festejos do quilombo Manzo. Nas festas das crianças há uma participação mais intensa: são elas que produzem o quitute no evento chamado “Rua de Erê". Makota diz que, além de proporcionar aos pequenos o alto valor nutricional da receita, é uma estratégia para aproximar gerações: “Tentamos trazer os mais novos para que eles cultivem uma relação com o que se come, uma vez que é por meio dessa curiosidade sobre a comida que vamos contra colonizando os alimentos e devolvendo a eles suas identidades originais.” 



O Kilombo Manzo produziu também um livreto com algumas das receitas do audiolivro. Ele foi colocado nas cestas básicas seguintes, de forma a facilitar o acesso das mulheres quilombolas e periféricas ao conteúdo. A necessidade de aumentar o aproveitamento de alimentos que antes estavam sendo desperdiçados, como o fubá, proporcionou uma nova visão sobre a cultura quilombola. “Começamos a entender que precisávamos não só devolver o nome para aqueles alimentos, mas também dar a eles a sua identidade de origem”. 

O processo de retomada do significado dos pratos da comunidade renovou a ligação geracional no Kilombo Manzo, uma vez que as mulheres mais jovens precisaram escutar atentamente as receitas que as matriarcas tinham preservado apenas na cabeça. “Não viemos de uma tradição que escreve a memória, mas falamos a memória. E se falar hoje é possível, o registrar, o contar e o ensinar também é, através dessa união com a juventude que hoje tem mais acesso e facilidade com a tecnologia”, salienta Makota. 

O acervo construído em conjunto trouxe as tradições novamente para a mesa e provocou os mais novos a se apropriarem das identidades alimentares que fazem parte da cultura da comunidade. O momento aprofundou a relação amorosa de Makota com o fubá, eternizada na escrita poética sobre seus usos diversos – até no autocuidado da pele. O encanto pela farinha foi tanto que, ao fim da entrevista para essa matéria, Makota deu uma recomendação alegre: “Vá atrás de saber a história, porque o fubá é romântico, viu?”. 

O poema-receita a seguir é de autoria dela:

 

Tão romântico como água e fubá, é Bamba de couve.

Lembro eu pequena, sentada à mesa de minha vó Dasdô.

Ela rascando a couve em pedaços igual rasgar papel, depois separava os talos.

Em uma panela, ela colocava um pouquinho de óleo, sal a gosto, e bastante pedaços de alho, deixava fritar até ficar torradinhos, depois juntava os talos da couve cortado em tubinho, colocava água e deixava ferver, em um copo, tipo caneca, ela misturava fubá e água fria, mexia até dissolver, e misturava esse fubá, a água fervente, mexia até o caldo engrossar, depois de bem cozido, ela acrescentava a couve rasgada e tampava, deixando o vapor cuidar do final dessa receita.

Se gostar de pimenta, fica divino.

Boa dica:

Essa receita tem mais sabor, se for preparada no inverno, com toda família juntinha contando histórias da infância

Ass Makota Kidoiale 


Com fubá eu disfarço minha idade, mesmo que ainda me sonho ser mais velha.

Eu trago fubá com gosto, um mucadinho de açúcar, e vou massageando meu rosto, devagarinho até na nuca, e tudo que pó grudado em minha pele, vai com água abaixo, e me sinto de cara nova.

Eta fubá

Ass Makota Kidoiale 



*Estágiária sob supervisão de Rafael Ciscati
 

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