Em que países a venda de maconha é legalizada? No Brasil, o consumo é crime?
Rafael Ciscati
10 min
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Em 2013, a organização britânica Transform Drug Policy Foundation publicou um guia com recomendações sobre como regular mercados de maconha. A obra, que acaba de ganhar uma versão atualizada e em português, explora aspectos diversos relacionados ao uso adulto da droga: da potência da maconha vendida ao tipo de embalagem utilizada para comercializar o produto. Recorre a experiências internacionais e estudos acadêmicos para oferecer informação qualificada e útil à elaboração de políticas públicas.
>>Leia também: ao legalizar venda de maconha, Brasil pode reparar injustiças
Os autores contam que, na época, havia poucas experiências internacionais que poderiam servir de referência para esse debate. Àquela altura, havia mercados legais de maconha não-medicinal – com finalidade recreativa – operando em alguns poucos estados dos Estados Unidos. Havia também experiências de descriminalização da droga. Caso de Portugal, onde o consumo de maconha (e de outras substâncias) deixou de ser crime em 2001. Por lá, quem é flagrado portando mais que 25g de maconha (a quantidade máxima permitida para consumo individual) não vai para a prisão: responde a um processo administrativo.
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Ao longo da última década, esse rol de experiências se ampliou – ainda que ligeiramente. Hoje, há mercados legais de cannabis nos EUA, Uruguai e Canadá. Outros países avançam na mesma direção. Caso de México, Colômbia, Luxemburgo, Nova Zelândia, Suíça e Países Baixos.
Nos lugares onde a maconha não-medicinal foi legalizada e regulada, a planta e seus derivados podem ser produzidos e vendidos, desde que o setor obedeça às regras estabelecidas pelas autoridades reguladoras locais.
Os resultados da legalização variaram. Uma revisão de estudos, publicada em 2022, apontou que, em alguns casos, caiu a ocorrência de crimes relacionados a drogas de maneira geral. Caso do Uruguai. Em outros países, no entanto, há sinais de que aumentou o consumo de maconha por adolescentes: um fator de risco para o desenvolvimento de males psiquiátricos.
Entre perdas e ganhos, o estudo de 2022 destaca que, de maneira geral, todos os locais que legalizaram a venda e o consumo de maconha – e criaram regras para controlar esses mercados – colheram um benefício comum: a redução do número de pessoas encarceradas por delitos relacionados a drogas.
Esse é um ponto especialmente sensível para o Brasil. No ranking de países que mais encarceram, o Brasil ocupa a terceira posição: cerca de 900 mil pessoas presas, segundo dados do CNJ. Uma em cada três foi presa por delitos relacionados à atual Lei de Drogas. A regulação do mercado de cannabis – ou a mera descriminalização do porte de drogas – “teria como consequência a colocação de pessoas que hoje estão presas por tráfico de maconha em liberdade”, defende o advogado Cristiano Maronna. Maronna é diretor da plataforma Justa, e coordenou a tradução do Guia para o português.
Ele conta que a discussão sobre regular o consumo adulto de cannabis ainda não ganhou corpo no Brasil. Mas deve ser vista com atenção crescente. Em parte, por causa do potencial do mercado brasileiro. Hoje, estima-se que, no mundo todo, o mercado canábico movimente em torno de US$50 bilhões. “E o Brasil tem condições de se tornar um dos grandes players do setor”, afirma.
Mas não é só: a discussão merece atenção, sobretudo, pelo potencial que tem para reparar injustiças. Desde que o consumo de maconha foi criminalizado, a guerra à substância se converteu numa guerra às pessoas. Em especial, pessoas negras e pobres, que foram desproporcionalmente mortas e encarceradas.
O guia traduzido por Maronna aponta diferentes caminhos para regular esse mercado. Faz duas recomendações principais: qualquer que seja o modelo escolhido, é preciso que as regras tenham em vista a proteção e promoção da saúde pública; e é preciso que o modelo eleito traga benefícios sociais. Como a diminuição da população carcerária e a geração de renda a grupos historicamente minorizados e afetados pela guerra às drogas. “A regulação precisa garantir reparação histórica e justiça social”, diz Maronna.
Mas, afinal, o consumo de maconha ainda é crime no Brasil? Isso vale, inclusive, para fins medicinais? Qual a diferença entre descriminalizar e legalizar? E em quais países é possível comprar e vender cannabis legalmente? Abaixo, Brasil de Direitos responde a todas essas dúvidas.
O consumo de maconha é proibido no Brasil?
No Brasil, todo tipo de conduta relacionada a drogas ilícitas, como a maconha, é considerada crime. Mas a Lei de Drogas brasileira, sancionada em 2006, distingue duas figuras importantes nessa história: a do usuário e a do traficante.
Em teoria, usuária é a pessoa que porta pequenas quantidades de droga para consumo próprio. Traficante é aquele que porta drogas com fins comerciais. A lei brasileira diz que a pessoa traficante pode ser presa. Já a pessoa usuária deve receber outros tipos de punição e sanções administrativas, mas não pode ser enviada para a prisão.
Na prática, essas duas figuras se misturam. A legislação brasileira não criou critérios objetivos para distinguir uma da outra. Não diz, por exemplo, qual a quantidade máxima de maconha que uma pessoa precisa portar para deixar de ser considerada usuária e passar a ser vista como traficante. A avaliação fica a cargo do juiz.
Desde que a nova legislação entrou em vigor, o número de pessoas presas no Brasil disparou: foi de 401 mil a 850 mil. A terceira maior população prisional do mundo.
Especialistas avaliam que isso aconteceu porque a vagueza da lei contribuiu para que muitos usuários — que portavam quantidades ínfimas de drogas — fossem punidos como traficantes. O número de presos cresceu.
Fenômeno semelhante se repetiu em outros países que flexibilizaram a legislação referente ao porte de drogas, suspendendo algumas punições sobre a prática. Em 2016, a socióloga Nathália Oliveira publicou um trabalho que avaliava os efeitos dessas políticas em 36 países. Em 22 deles, os números do encarceramento cresceram, conforme mais pessoas passaram a ser processadas como traficantes. Para ela, o aparente deslize da legislação não é acidental: “Sempre que me perguntam se a lei de drogas acerta ou erra, digo que é importante entender que essa não é uma lei despida de intencionalidade”, afirma. “Ela erra se o objetivo é garantir direitos. Mas acerta para a finalidade para a qual foi criada, de controle e extermínio da população negra”, disse Nathália à Brasil de Direitos em 2019.
O uso da maconha para fins medicinais é autorizado no Brasil?
O consumo para fins medicinais ainda não foi legalizado. Desde 2015, tramita na Câmara dos Deputados um projeto de lei que propõe a legalização e a regulação desse mercado. O texto foi aprovado em uma comissão especial da Câmara, mas não avança desde 2018. Em parte, a demora é resultado da oposição de parcelas conservadoras do parlamento. Logo que chegou ao Planalto, o ex-presidente Jair Bolsonaro disse que vetaria o projeto, caso o texto fosse aprovado.
Apesar disso, as discussões sobre o uso medicinal da cannabis avançaram no país. Desde 2015, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária permite a importação de medicamentos à base de cannabis. Hoje, a lista de produtos autorizados pela agência chega a 18 artigos.
Cresceu também o número de decisões judiciais autorizando o cultivo da erva para fins médicos. Atualmente, a plantação só é permitida em caso de obtenção de decisão judicial favorável.
Qual a diferença entre descriminalizar e legalizar?
Descriminalizar o consumo de cannabis significa permitir que as pessoas usem a substância sem ser punidas criminalmente. É esse o sistema em voga em Portugal desde 2001. Por lá, o consumo de qualquer droga deixou de ser crime, mas ainda pode ser alvo de punições. A legislação estabelece quantidades máximas permitidas para consumo pessoal. Quem é flagrado portando quantia superior pode ser obrigado a prestar serviços comunitários, pagar multa, ou pode sofrer outros tipos de sanção. A pessoa também passa por uma avaliação médica, que investiga casos de dependência.
O governo português afirma que a descriminalização contribuiu para diminuir estigmas. Especialmente nos casos de pessoas que fazem uso abusivo de drogas. Elas deixaram de ser vistas como criminosas, para se tornar pessoas que precisam de cuidados médicos e do acompanhamento do sistema de assistência social.
Em que países a venda de maconha é legalizada?
Hoje, há mercados regulados de maconha em alguns estados dos Estados Unidos, no Uruguai e no Canadá. Cada um tem suas particularidades.
Como funciona no Uruguai – o Uruguai foi o primeiro país do mundo a legalizar o uso adulto da maconha, em dezembro de 2013. Para comprar ou cultivar a planta, os uruguaios precisam se registrar no Instituto de Regulação e Controle da Cannabis. Na ocasião, decidem como preferem adquirir a maconha: comprando em farmácias, plantando em casa ou se associando a clubes canábicos, que cultivam a planta para seus membros. É proibido fumar no local de trabalho e dirigir sob o efeito da maconha.
Os postos de venda precisam receber uma licença do governo uruguaio para operar, e o governo regula o preço do produto.
As autoridades uruguaias afirmam que, desde a legalização, o tráfico ilegal de maconha não desapareceu. Mas estima-se que esse mercado paralelo seja, hoje, o equivalente a um quinto do que era antes de 2013.
Como funciona no Canadá – em outubro de 2018, o Candá se tornou o segundo país a legalizar o uso recreativo de maconha. De acordo com uma revisão de estudos publicada em 2022, o objetivo dos canadenses era combater o mercado ilegal da erva, e reduzir a frequência de uso de maconha pelos jovens.
De acordo com as regras canadenses, pessoas com 18 anos ou mais podem portar até 30g de cannabis. Cada residência pode cultivar até quatro plantas. As regras de venda variam a cada província.
Na Espanha e nos Países Baixos, o consumo de maconha para fins recreativos é permitido, desde que aconteça em casa ou em ambientes específicos – as coffee shops. E, no México, uma decisão da Suprema Corte de 2021 descriminalizou o uso adulto da planta. Desde então, o Congresso mexicano debate uma lei para regulamentar o mercado.
Para saber mais
Leia o estudo – Non-medical cannabis use: international policies and outcomes overview. An outline from Portugal.
Em que países a venda de maconha é legalizada? No Brasil, o consumo é crime?
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