Em reunião com representantes da ONU, grupos alertam para tortura nas prisões
Subcomitê das nações unidas visita brasil pela terceira vez em 11 anos. Grupos de defesa dos direitos humanos apontam fragilização de mecanismos de combate à tortura na pandemia
Rafael Ciscati
7 min
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Unidades prisionais superlotadas, com fornecimento de água intermitente e alimentação precária. Na noite da última terça-feira (1), organizações de defesa dos direitos humanos se reuniram com representantes do Subcomitê de Prevenção à Tortura (SPT) da Organização das Nações Unidas para descrever aquilo que definiram como a “piora nas condições de aprisionamento” durante a pandemia de covid-19 no Brasil. Segundo as organizações, medidas adotadas durante a emergência sanitária deixaram pessoas privadas de liberdade vulneráveis a violações, e foram ineficazes para deter a propagação do vírus no sistema prisional. A situação foi agravada pelo entraves impostos à atuação do Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura, cujos peritos relatam dificuldades para trabalhar desde 2019.
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Essa é a terceira visita do SPT ao Brasil — o grupo veio ao país em 2011 e 2015. Nas ocasiões anteriores, os peritos da ONU emitiram um conjunto de recomendações destinadas a adequar o Brasil ao Protocolo Facultativo à Convenção da ONU Contra a Tortura e Outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes. O documento estabelece que os países signatários — como o Brasil — serão visitados, regularmente, por órgãos independentes encarregados de prevenir que pessoas privadas de liberdade passem por situações de tortura. “Nenhuma das recomendações feitas à época foi plenamente adotada”, afirma Leonardo Santana, assessor de advocacy da Rede de Justiça Criminal, presente ao encontro. Criada em 2010, a Rede aglutina nove organizações que combatem o encarceramento em massa. Além dela, participaram da reunião grupos de familiares de pessoas presas, representantes do Conselho Nacional de Direitos Humanos e da Coalizão Negra por Direitos.
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Santana explica que visitas do Subcomitê a nações signatárias não são, necessariamente, indicativo de um problema. Os peritos da ONU, no entanto, vieram ao país com uma pauta definida: entender os efeitos do decreto 9.831/2019, editado pelo presidente Jair Bolsonaro em junho do primeiro ano de governo.
Criticada por entidades de defesa dos direitos humanos, a medida cortou os salários dos 11 peritos que compõem o Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura. Criado em 2007, o Mecanismo se tornou um dos principais órgãos anti-tortura do país. Tradicionalmente, se encarrega de fazer inspeções a unidades prisionais, locais de acolhimento de crianças e idosos, hospitais psiquiátricos, comunidades terapêuticas e unidades de cumprimento de medidas socioeducativas.
Desde o decreto presidencial, membros do Mecanismo apontam tentativas de cerceamento e perda de autonomia. Hoje, seus salários são pagos graças a uma decisão liminar da justiça federal, que suspendeu, em caráter provisório, os efeitos do decreto presidencial. “No momento, a situação do Mecanismo é precária. Equivale a estar na corda bamba”, afirma Santana. Há mais de dois anos, tramitam na Câmara dos Deputados projetos de decreto legislativo contra a medida do presidente.
Apesar de ter atuação independente, o Mecanismo recorre à estrutra do Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos (MDH) para viabilizar viagens e trabalhos burocráticos. Relatos dos peritos dão conta de tentativas de impedir a liberação de passagens de avião. Desde de 2019, o grupo viu diminuir o número de assessores e funcionários dedicados ao trabalho administrativo. “Hoje, em grande medida, somos nós que fazemos os papeis de peritos, de assessoria e de apoio administrativo”, informa um dos membros do grupo, que prefere não ser identificado.
Durante o encontro de terça-feira, o presidente do Conselho Nacional de Direitos Humanos, Darcy Frigo, afirmou que a fragilização do Mecanismo entra no bojo de uma série de medidas adotadas pelo governo Bolsonaro para, segundo ele, limitar a participação social nas decisões do governo. “Logo no início deste governo, houve a edição de um decreto que afetou a participação social nas instâncias trazidas pela Constituição de 1988. A situação do MNPCT se situa nesse contexto, já que a atual gestão não prioriza a participação social nas políticas públicas e no monitoramento e aplicação de instrumentos internacionais de direitos humanos”, afirmou.
Membros da CNDH e da Coalização Negra por Direitos abordaram, ainda, o assassinato do imigrante congolês Moise Mugenyi Kabagambe, no Rio de Janeiro. O rapaz, de 24 anos, foi torturado e morto por funcionários de um quiosque onde trabalhava na Barra da Tijuca, depois de cobrar o pagamento de salários em atraso. Para os representantes da CNDH, o assassinato de Moise é reflexo de uma sociedade que naturalizou a tortura e a violência contra a população negra. “Essa violência trata corpos negros e periféricos como inimigos a serem combatidos”, afirmou Vívian Mendes, conselheira e coordenadora da Comissão dos Direitos da População em Situação de Privação de Liberdade do CNDH
Constrangimento internacional
A expectava das organizações sociais é de que os peritos da ONU encaminhem essas informações a autoridades e figuras políticas brasileiras. “Informamos a eles que somente nossa pressão, enquanto sociedade civil, nem sempre basta para convencer políticos da importância dessas pautas”, afirma Santana.
A vinda do grupo ao Brasil, segundo ele, foi comunicada às organizações de defesa os direitos humanos em finais de janeiro. Apesar de a visita ter uma pauta bem definida — a fragilização do Mecanismo Nacional de Combate à Tortura — os grupos reunidos em Brasília na última terça-feira entenderam ser importante fornecer informações mais amplas sobre o contexto brasileiro. Em especial sobre o período que se seguiu ao início da pandemia de covid-19 quando, na avaliação da Rede de Justiça Criminal, os mecanismos de combate à tortura nas prisões brasileiras de deterioraram, e abusos se tornaram mais comuns: “A impossibilidade prática de distanciamento social em celas abarrotadas se somou à falta de acesso a equipamentos de proteção individual (EPIs) e à água. No segundo semestre de 2020, apenas seis estados (AL, CE, DF, MS, MG e SP) informaram fornecer água potável em tempo integral em suas unidades prisionais. Em março de 2021, cerca de 300 pessoas morreram, nos sistemas carcerário e socioeducativo por causa do coronavírus, alta de 190% nos óbitos em relação ao ano anterior“, afirmou a Rede em comunicado enviado a jornalistas.
Dentre os pedidos feitos pelo grupo, segundo Leonardo, há a demanda de que os membros do Subcomitê se reúnam com parlamentares e insistam para que as audiências de custódia por videoconferência sejam probidas. Audiências de custódia são o primeiro contato da pessoa presa em flagrante com o sistema de justiça. Uma de suas funções é apurar se a prisão foi realizada sem violar os direitos da pessoa detida. Instituída durante a pandemia de covid-19, a versão virtual das audiências é criticada por organizações da sociedade civil, segundo as quais a distância entre juiz e preso inviabiliza a apuração de casos de tortura.
Ao fim da passagem pelo Brasil, espera-se que os peritos da ONU emitam um novo conjunto de recomendações ao Estado brasileiro. Nas visitas anteriores, o grupo cobrou o combate à a superlotação nos presídios, e o estabelecimento de um programa de atendimento médico nas prisões, dentre outras medidas. “O peso disso é fazer com que o país passe por um constrangimento internacional, uma vez que ele terá de rebater o que for dito”, explica Santana.
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