Imigrantes africanos e haitianos criam iniciativas para enfrentar a Covid-19
Além da emergência sanitária, essas populações vivenciam manifestações racistas no Brasil. Para resistir à pandemia, criam redes de solidariedade
Alex Vargem
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Alex Vargem
Sociologo e pesquisador sobre imigração e refúgio
Logo que percebeu a gravidade da pandemia do novo coronavírus, o haitiano Oscar* decidiu por mãos à obra. Embora prefira não ser identificado nessa matéria, Oscar é uma referência para mais de 400 famílias de haitianos que vivem num bairro no extremo leste da capital paulista. Entendeu que a pandemia afetaria a oferta de trabalho na capital — e talvez levasse fome a seus conterrâneos. Com a ajuda dos vizinhos e amigos, organizou uma grande campanha de arrecadação e distribuição de alimentos.“Temos que agir, encontrar soluções e cobrar ações do poder público o tempo todo. Não podemos parar ou seremos esquecidos”, afirma ele. Oscar ainda criou materiais de comunicação — áudios, com informações importantes sobre como se proteger contra o Sars-Cov-2, o novo coronavírus — e que ele distribui por grupos de whatsapp. São informes feitos por órgãos oficiais, ou por organizações sociais e disponíveis em português, mas que ele traduz para o créole haitiano.
Desde que o estado de São Paulo decretou o fechamento de serviços não essenciais, em meado de março, iniciativas como a capitaneada por Oscar* se repetem pela capital paulista. São ações desenhadas por imigrantes haitianos e africanos de diversas origens, que se organizam para prestar ajuda a suas comunidades e para cobrar ações do poder público. Além de temer ser vítimas do vírus, e das dificuldades econômicas decorrentes da pandemia, essas populações de imigrantes enfrentam problemas adicionais. Faltam informações disponíveis em seus idiomas de origem, dizem eles, algo que dificulta a prevenção. Xenofobia e racismo — elemento estruturante da sociedade brasileira — não dão trégua durante a pandemia. Mesmo em situação adversa, lideranças imigrantes assumem posições de protagonismo, para proteger suas família e comunidades.
“Apesar da pandemia, mulheres africanas que vivem em São Paulo seguem reivindicando direitos. São mulheres fortes que fazem de tudo para amparar suas crianças e suas famílias”, diz a congolesa Claudine Shindany. Claudine trabalha no setor de regularização migratória do Centro de Apoio e Pastoral do Migrante (Cami). Localizada num bairro central de São Paulo, a organização presta apoio a migrantes que vivem por toda a capital e região metropolitana. Claudine acompanha, de perto, o dia-a-dia dessas comunidades. “Nestes tempos, vivemos grandes problemas. Ainda persistem manifestações racistas”, conta ela.
Para os imigrantes negros que vivem em São Paulo, sobreviver à pandemia significa estreitar vínculos de solidariedade. Eles são essenciais frente ao vírus, e frente ao racismo estrutural próprio da sociedade brasileira, cuja violência recrudesce ante a pandemia. No Brasil, pessoas negras têm chances maiores de ser vítimas do novo coronavírus. Segundo boletim epidemiológico do ministério da Saúde do dia 8 de maio, pretos e pardos já somam mais da metade (50.1%) das vítimas da nova doença.
Prosper Diganga, da República Democrática do Congo. Para ele, preocupa a intenção de testar vacinas na África (Divulgação)
Frenta a necessidade de isolamento social, o ativismo dessas lideranças precisou ser reorganizado. A rápida propagação da Covid-19 exigiu que reuniões presenciais e protestos de rua cedessem lugar a ações articuladas pela internet. A jornalista Deborah Ndefru, da República Democrática do Congo, manteve ativo seu canal no Youtube, por exemplo. Por lá, em reportagens narradas em francês e lingala (língua falada em algumas regiões da África), ela se comunica com sua comunidade sobre temas diversos. Deborah relata a situação e as estratégias da comunidade frente à pandemia: “Aqui na minha região na zona leste de São Paulo há mais de 300 famílias de angolanos e congoleses, muitas mulheres com filhos. Ainda não há casos de coronavírus entre nós, pois nos precavemos antes mesmo da quarentena. Muitos conseguiram, mas há alguns com dificuldade da obtenção do auxílio emergencial e há dúvidas de como se cadastrar para obter o CPF. A ajuda é importante, mas tem que ser dialogada, realizada de forma horizontal, sem ninguém tirar vantagem da nossa situação. Vivemos das diversas ações criadas pela própria comunidade, considerando que muitos moram de aluguel ou em prédios ocupados”, relata.
Entre grupos de imigrantes, a importância de se fazer ouvir, e a necessidade de combater estigmas raciais, é tópico de discussão constante. Aos africanos que moram no Brasil, preocupa especialmente a maneira como os países daquele continente são retratados. A notícia de que uma possível vacina poderia ser testada em populações africanas gerou consternação. A intenção foi anunciada por médicos franceses — e criticada pela Organização Mundial de Saúde (OMS). Prosper Dinganga, oriundo da República Democrática do Congo, residente no Brasil há 7 anos, é idealizador do Projeto A Voz do Congo, cujo objetivo é tratar temas da situação social, política e econômica do seus país e do continente africano. Ele realiza o ativismo transnacional, e comenta o assunto: “Somos filhos da África e não podemos aceitar que nosso continente seja um grande laboratório para que africanos, mulheres e homens, sejam testados com vacinas por decisões dos ocidentais. São pessoas de fora do continente africano que não podem decidir sobre o nosso futuro. Não somos cobaias! Não somos ratos de laboratório do mundo ocidental. A época da colonização acabou! Não cabe a eles decidir sobre o futuro da África. Somos seres humanos e queremos ser respeitados”, destaca. Prosper também critica o tratamento dado aos africanos na China, pois muitos são apontados de serem transmissores do coronavírus, impedidos de entrar nos restaurantes, shoppings e demais estabelecimentos públicos depois que a população local saiu da quarentena. “A sociedade civil tem que condenar estes atos xenofóbicos, pois é propagado boatos sobre a população africana. Não podemos aceitar isso”, declara.
Artistas que residem em São Paulo também criticaram a testagem da vacina contra o novo coronavírus na África, como o rapper senegalês Kunta Kinte. Por meio de suas redes sociais, ele realizou uma live de música e denúncia para o seu público sobre a testagem da vacina no continente. “Estamos aqui para falar que estamos contra a testagem da vacina na África, somos artistas e como somos porta-voz do nosso povo, nós africanos estamos contra”. No começo de abril, o diretor geral da OMS, Tedros Adhanon, reagiu à discussão dizendo que a África não será um campo de testes para vacinas contra o novo coronavírus.
O luto longe de casa
Para quem vem de fora, e hoje vive no Brasil, o temor de ser vítima do vírus assume significados novos. Entre os que perderam familiares e compatriotas no Brasil ou em outros países, em plena pandemia, a dor da perda é agravada, em alguns casos, pela ausência no funeral. O luto na diáspora dificulta o cumprimento das obrigações culturais necessárias junto aos familiares, em alguns casos, realizados à distância. Neste prisma, a importância dos cultos aos sagrados das diversas religiões, a preocupação com a saúde mental, o medo da morte no país dos “outros”, são questões importantes para compreender como os africanos e haitianos lidam com a problemática e o temor de serem infectados e morrerem no Brasil. “Temos medo de nos infectarmos e morrermos aqui, longe de casa, longe dos nossos familiares, sem ser realizado nossos rituais, feitos em nossa terra. É preciso todos os cuidados possíveis para não se infectar com o Covid-19!”, diz o africano Jean*.
Para o psicólogo Antônio*, o contexto exige dos imigrantes especial cuidado com a saúde psicológica .”Não podemos deixar de nos cuidar, manter a saúde mental é essencial nestes tempos difíceis”, afirma. Angolano, Antônio trabalha no sistema de saúde de São Paulo. É um dentre muitos médicos, enfermeiros e psicólogos que, no meio da emergência sanitária, atuam na linha de frente contra a Covid-19 no Brasil. É um papel importante e que, segundo ele, passa muitas vezes despercebido pelos brasileiros. “Somos africanos, já passamos por muitas situações em nosso continente, enfrentaremos mais essa, agora na diáspora”, relata.
*Os nomes foram alterados para preservar a identidade dos entrevistados
Foto de topo: A congolesa Claudine Shindany (arquivo pessoal)
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