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Legislação ambiental falha abre espaço para “grilagem verde”, aponta relatório

Rafael Ciscati

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No interior do nordeste, as terras públicas usadas há gerações pela população para pastorear bois e cabras são chamadas de  “fecho de pasto”. São vastas porções do cerrado, com vegetação nativa preservada e algumas nascentes de rios. Os fechos de pasto não têm dono. São terras públicas, onde famílias criam gado de forma comunitária e sem causar danos ao meio-ambiente. Por mais de 200 anos, os moradores do povoado de Capão do Modesto, no oeste baiano, repetiram essa rotina: regularmente, sobretudo nas épocas de seca, levavam seus rebanhos aos fechos de pasto, e de lá colhiam algumas frutas típicas do cerrado para comércio e subsistência. Foi assim até 2017. Naquele ano, os pastores de Capão de Modesto que tentaram refazer o caminho trilhado por seus pais e avós foram barrados por seguranças armados. Sem prévio aviso, um consórcio de empresas se declarara dono de 10 mil hectares daquela faixa de terras públicas. Afirmavam que aquela era uma área de proteção ambiental particular. Expulsos dos fechos de pasto por uma decisão judicial, os camponeses foram acusados de causar danos ao meio-ambiente. Desde então, comunidade local e empresas travam uma disputa na justiça pelo direito de uso de um território tradicional.

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O caso se tornou emblemático de uma situação que se repete em regiões rurais dos estados da Bahia, Maranhão, Piauí e Tocantins. A área, conhecida pelo acrônimo Matopiba (cada sílaba é a inicial do nome de um dos estados), é marcada pela rápida expansão do agronegócio. Ali, conforme aumenta a área para cultivo de soja, cresce também o desmatamento: nos últimos 20 anos, mais de 145 mil km de cerrado nativo desapareceram. O processo é acompanhado por conflitos por terras, violência e morte. Um estudo recém-publicado pela Associação de Advogados de Trabalhadores Rurais (AATR) sustenta que, com frequência, normas e leis que deveriam proteger o meio-ambiente são utilizadas como parte da estratégia de grileiros e de grandes proprietários de terra para se apossar de terrenos públicos, com a consequente expulsão das comunidades que vivem ali há gerações.

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É essa a situação de Capão do Modesto. Nas ações contra os camponeses, o consórcio de empresas se ampara em dois artigos do Novo Código Florestal. Pelas regras dessa lei, sancionada em 2012, cabe aos próprios proprietários rurais declarar quais os limites de suas terras ao registrá-las no Cadastro Ambiental Rural (CAR). Trata-se de um registro que informa as fronteiras de uma propriedade rural e a localização de sua reserva legal — a porção da terra que deve ser preservada com vegetação nativa. “Rigorosamente,o CAR não cumpre o papel de uma comprovação de propriedade”, explica a advogada popular Joice Bonfim, coordenadora da AATR. “Na prática, ele tem sido usado em processos judiciais contra comunidades tradicionais, para provar a posse sobre as terras”. É esse o documento apresentado pelas empresas ao reivindicar a propriedade sobre os fechos de pasto de Capão do Modesto.

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O Código Florestal também permite que a área da reserva legal, que deve ser proporcional ao tamanho total da propriedade, seja estabelecida em uma região distante da porção de terra explorada economicamente. Na avaliação de ambientalistas, os dois trechos do código abrem brechas para fraudes. “Hoje, há empresas que declaram áreas distantes de suas fazendas como sua reserva legal”, conta Joice. ”São terrenos públicos, mas que constam como propriedade privada no CAR”. A estratégia permite às companhia desmatar toda a área de suas fazendas, sem a necessidade de preservar a mata nativa.

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A prática recebe o nome de “grilagem verde”. Em teoria, explica Joice, os dados geográficos declaradas no CAR deveriam ser verificados pelos órgãos ambientais estaduais, mas a fiscalização é falha. A omissão cria um quadro rocambolesco: dados levantados Instituto Sociedade, População e Natureza (ISPN), e apresentados pela AATR, demostram que, na região do Matopiba, 95% dos imóveis rurais cadastrados no CAR estão sobrepostos a áreas de preservação ambiental, territórios ocupados por comunidades tradicionais ou terras indígenas. “Não há um compartilhamento de dados entre a autoridade ambiental, que trata do CAR, e os órgão fundiários, que cuidam dos registros de terras”. conta Joice. “Essas sobreposições passam despercebidas”.

Além da crítica ao código floresta, o estudo da AATR lista casos de leis aprovadas em âmbito estadual, e que facilitaram a transferência de terras públicas às mãos de particulares. Os casos mais recentes foram identificados no Piauí, onde uma lei estadual oficializou todos os títulos de propriedade registrados até 2015. Na prática, explica Joice, a medida legalizou a grilagem praticada até aquela data. “Há uma movimentação, nos estados, que busca validar casos de grilagem”, diz a advogada.

O quadro de insegurança jurídica deixa vulneráveis as populações tradicionais dessas regiões. A produção agrícola em região de cerrado passou por ciclos de incentivo governamental a partir dos anos 1970. Nos documentos de então, a região é descrita como um imenso vazio demográfico. Parte desse olhar, diz Joice, sobrevive ainda hoje no Matopiba. Documentos da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa), relacionados pela AATR, reconhecem a existência de 34 comunidades quilombolas na região. Levantamentos da Fundação Cultural Palmares chegam a número muito maior: 342 comunidades quilombolas. “Os números da Embrapa são extremamente subdimensionados”, diz a advogada. ” O falso pressuposto do vazio demográfico, que pode ser explorado economicamente, ainda existe”.

Essa aparente negligência tem consequências graves para quem vive na área. Dados da Comissão Pastoral da Terra (CPT) apontam para o recrudescimento dos conflitos nos últimos dez anos: nesse período, as disputas por terra nos quatro estados do Matopiba saltaram de 131, em 2010, para 231 no final de 2019. Em Capão do Modesto, as famílias relatam casos de ameaças e intimidações a lideranças locais. Nos fechos de pasto, os barracões construídos pela comunidade para abrigar o gado foram queimados pelas empresas que reivindicam a terra.

Na avaliação da AATR, um primeiro passo, importante para reverter esse quadro, é estimular o compartilhamento de informações entre os órgãos ambientais e fundiários. “Desse modo, se houver algum tipo de investigação ou conflito envolvendo aquela propriedade, o órgão fundiário poderia suspender o CAR”, diz Joice.

Foto de topo: reprodução AATR

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