“Meu familiar chegou a pesar 30 quilos”, conta ativista ao relembrar visitas ao cárcere
Após mudanças no sistema carcerário, Rosemery Raiol criou o coletivo Felipa Maria Aranha para apoiar familiares de pessoas encarceradas
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por Rosemery Raiol, em depoimento à Bárbara Diamante
Meu nome é Rosemery Raiol Moura, mas gosto que me chamem de Mery. Nasci e cresci em Santa Izabel, no Pará. Tenho uma loja online, trabalho com roupas há mais de 10 anos e fiz disso a minha fonte de renda. Sempre fui uma pessoa que luta pelos seus direitos. É uma coisa natural minha. Mas já fui uma pessoa bem difícil (preconceituosa até) em relação ao sistema prisional.
Hoje em dia, digo que língua não tem osso, porque eu era uma pessoa que julgava muito. Cansei de passar na frente de penitenciárias e dizer: “as mulheres que estão aí devem ser todas desocupadas. Não devem prestar”. Nunca pensei que, um dia, visitaria alguém preso. Até que um familiar* meu parou atrás das grades.
Ele ingressou no sistema pela primeira vez em 2014 e foi condenado a cumprir pena no regime semi-aberto. Mas tinha cometido outros delitos que acabaram sendo descobertos. Com isso, a pena aumentou, e ele passou para o regime fechado. Na época, estávamos brigados. Por isso, passei os dois primeiros anos sem visitá-lo. De 2016 até julho de 2019, o ritmo de visita era mais tranquilo, mas eu não me sentia bem. Quando passei a visitá-lo, a partir de 2016, ainda era possível manter uma ligação direta com o parente encarcerado. A penitenciária deixava a gente levar comida e remédios. Ficávamos lá das nove da manhã às quatro da tarde. Ainda assim, eu sentia muita ansiedade até o momento de vê-lo e passava mal a ponto de ter cólicas. Ficava agoniada porque o ambiente era hostil e desconfortável.
As coisas pioraram a partir de 2018. Naquele ano, ficamos sabendo que seriam feitas modificações no sistema prisional, mas, no começo, não soubemos o que mudaria. Aos poucos, foram sendo retirados ventiladores e colchões. A alimentação foi reduzida. Na época, toda a assistência do preso era a família que mantinha. Comida, itens de higiene: o Estado não garantia nada. O governo passou a restringir a entrada dessa ajuda.
Em 29 de julho de 2019 aconteceu uma chacina dentro do Presídio de Altamira. Foram assassinados 62 presos na unidade prisional – a maioria era de presos provisórios, que não tinham sido julgados. Depois disso, o governo federal enviou a Força-Tarefa de Intervenção Penitenciária (FTIP) para o Pará. Eles entraram no Complexo de Americano, no dia 5 de agosto de 2019 e suspenderam as visitas da família. Em outubro daquele ano, proibiram as visitas dos advogados.
Aqui fora, as notícias que recebíamos vinham através dos presos que conseguiam ser liberados por meio de alvarás de soltura.. Eles descreviam casos de empalamento, presos com prego no pé e vários momentos em que tinham que ficar em posição de procedimento [prática de revista vexatória que consiste em manter o encarcerado agachado].
Foi quando começamos a nos organizar como familiares. Éramos cerca de 10 mulheres quando fomos à uma audiência pública para testemunhar. Tempos depois, o Ministério Público Federal (MPF) entrou com um processo administrativo contra a FTIP e conseguimos a retomada das visitas, já no final de outubro de 2019. Também foi liberada a entrada dos advogados e de roupas e kits de higiene.
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Desde essa época, surgiu em nós o desejo de fundar uma associação de familiares de pessoas presas. Por questões financeiras, a ideia não ia para a frente. Naquele tempo, eu não conhecia o termo “coletivo”. Descobriria o termo em 2023, ao conversar com uma pessoa da Assessoria Popular Maria Felipa [organização sediada em Minas Gerais, que trabalha com a garantia de acesso à justiça para mulheres negras, mães, periféricas e pessoas LGBTQIA+]. Ela disse: “já que vocês não tem dinheiro para abrir uma associação, façam um coletivo!”. Dei uma lida e fui conhecer o significado. Foi assim que nasceu o Coletivo Felipa Maria Aranha.
O nome surgiu por acaso: pesquisei quem era a Maria Felipa, que dava nome à Assessoria que me orientou, Nos resultados da busca, apareceu a Felipa Maria Aranha, uma conterrânea nossa aqui do Pará. Era uma mulher negra, escrava, que lutou por direitos. Aí eu falei “vamos botar uma representante mulher, porque a mulher sempre é o alicerce de tudo”. Se tu for olhar toda a história, sempre tem uma mulher ali no meio. O nosso coletivo, por exemplo, tem mais mulheres do que homens.
O nome também ajuda a gente não ser criminalizada. As pessoas que defendemos são chamadas de “escória da sociedade”. Dificilmente nossa causa ganha engajamento, um olhar humano. Só nos enxergam aquelas pessoas que conhecem nossa trajetória ou que tiveram um parente encarcerado. Mostrar que ser familiar não é crime e que a pena do preso não pode ser estendida à família, duas das nossas missões, é bem difícil.
Nosso trabalho consiste em orientar familiares de pessoas presas sobre questões burocráticas, e informá-los sobre seus direitos. Também participamos de reuniões com órgãos como a OAB e o MPF, a fim de trazer maior dignidade aos privados de liberdade. O coletivo tem um grupo no whatsapp com 14 pessoas bastante dinâmicas e interativas. Nesse grupo, eu coloco informações sobre as mudanças legais, peço para elas espalharem esses materiais e acolherem as questões dos outros familiares. Essa é a corrente: elas ajudam outras pessoas, que ajudam outras.
Eu recebo muitos parentes que estão tomando remédio controlado, porque não aguentam. Eu mesma sofro. Depois de um período em liberdade, meu familiar tornou a ser preso em 2021. Para mim, hoje, a visita continua sendo motivo de apreensão. Não podemos mais tocar no nosso familiar. Em alguns plantões permitem que abrace, na saída ou na entrada. Uma mesa separa o visitante da pessoa presa. Quando não, ficamos sentados um diante do outro, em cadeiras separadas por um metro de distância.
A visita acontece uma vez por mês e não chega a durar nem uma hora. Dependendo do plantão, são 40 minutos. Se os agentes resolverem que serão 20 minutos, são 20 minutos. E assim por diante. A família leva sempre um kit com duas toalhas e três cuecas. Só isso. Eles não têm desodorante, nem pasta ou escova de dentes.
Outra situação que deixa a gente muito vulnerável é que, no momento da visita, os agentes ficam com aquelas armas grandes em punho. O dia de visita, que era pra ser tranquilo, nunca é. São poucas pessoas que se acostumam, a maioria sente nervosismo, principalmente desde a vinda da FTIP (a força federal atuou no estado até agosto de 2020).
Os agentes gritam muito com o familiar, nunca falam em um tom cordial. Mas os familiares têm medo de se articular para exigir mudanças ao Estado, porque quem já o fez teve a carteira de visitante (documento que controla a entrada e saída nos presídios nos dias de visita) suspensa, ou os parentes encarcerados foram jogados para outras unidades distantes. Aqui no Pará existem 53 unidades prisionais e tem lugares que para chegar são 3 dias de barco. Se for de carro, dá uns 2 dias e meio, sem parar. Se for parar, demora mais.
Eu não me acostumei, tenho crise de ansiedade quando chega a véspera da visita. A minha cabeça já vai trabalhando: “como vou encontrar ele?”. Quando ele retornou ao sistema, em 18 de outubro de 2021, pesava 85kg. Quando eu fui visitá-lo, em setembro de 2022, ele já estava magro. Em fevereiro ou março de 2023, percebi que ele estava muito magro e que pesava menos de 30 quilos, com 1,70 m. Ele passou a ter desmaios e andava apoiado por outros presos.
Por isso, não tenho como abandonar essa luta. Estou tentando mobilizar atendimento psicológico para os familiares e para os presos. Converso muito com o Ministério Público, para tentar fazer um trabalho de formação, levar psicólogos aos presídios.
Quando meu familiar foi preso, eu comecei a fazer esse trabalho de orientar os parentes sobre quais documentações devem levar e onde ir para conseguir a carteira de visitante. Percebia que esse tipo de informação não chegava ao conhecimento de todos, então resolvi auxiliar com essas questões.
Se eu disser que não gosto de fazer o que faço, estou mentindo. Recentemente, atendemos o caso de um detento chamado João Paulo. Ele sofre da Síndrome de Guillain-Barré, uma doença autoimune que ataca o sistema nervoso. A síndrome acabou afetando a medula e ele está paraplégico, utilizando sonda. Nós do Coletivo Felipa Maria Aranha, em conjunto com a Assessoria Popular Maria Felipa e a Defensoria Pública do Estado do Pará, conseguimos fazer com que ele se tratasse em casa.
Levamos o assunto à equipe médica da Secretaria de Estado de Administração Penitenciária (SEAP), que reconheceu a necessidade de cuidados domiciliares. O Ministério Público acatou o pedido e a Justiça concedeu prisão domiciliar por 180 dias. Nesse regime, ele terá acesso a acompanhamento médico e atendimento especializado. Depois do ocorrido, recebi um áudio da tia dele que me deixou emocionada. E é isso que alenta o coração, saber que posso ajudar de alguma forma.
*Grau de parentesco não revelado para preservar a identidade do familiar
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