Moradores de favela criam gabinete de crise para combater Covid-19
Rafael Ciscati
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“Lavar as mãos sempre como, se as pessoas não têm nem água em casa?”. Já fazia alguns dias, a carioca Camila Santos estava incomodada com as recomendações que chegavam pela TV e pelo jornal, ensinando como evitar a contaminação pelo novo coronavírus. Desde que o primeiro caso foi dignosticado no Brasil, no final de fevereiro, o número de pessoas infectadas pelo Sars-CoV-2 disparou. Na última contagem do ministério da Saúde, divulgada neste domingo (22), o país já somava 1546 casos. Para Camila, era uma questão de tempo — de pouco tempo — até que o vírus chegasse ao Complexo do Alemão, onde ela e os três filhos vivem desde que nasceram. A receita recomendada para escapar à epidemia — que envolve redobrar cuidados de higiene e isolar-se em casa — parecia impraticável para ela e para muitos de seus vizinhos, que vivem em um dos maiores conjuntos de favelas do país : “Na favela, o fornecimento de água é intermitente. E sabonete para lavar as mãos constantemente é coisa cara”, conta. “As casas são pequenas. Se isolar como?”.
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Na manhã do último dia 17, Camila publicou uma mensagem no Twitter que soou como uma convocatória: “Quero dicas de isolamento para quem mora em barracos de madeira. Dicas pra famílias com 9, 10, 11 pessoas. Pessoas que moram em três cômodos. Qual o plano B para quem mora nas favelas?”. A seguir, disparou mensagens de whatsapp para lideranças populares e comunicadores que vivem no Alemão. O objetivo era reuní-los para pensar estratégias de prevenção adequadas à realidade das populações periféricas. O gabinete de crise, como o grupo foi batizado, foi formado pelo whatsapp e soma mais de 20 pessoas. Desde a semana passada,colocou em curso uma série de atividades: de uma grande campanha de comunicação, com faixas informativas espalhadas pelas ruas do Alemão, à coleta de sabonetes,água e álcool em gel para doação. Há também arrecadação de dinheiro e comida, para apoiar famílias afetadas economicamente pela pandemia. O grupo chegou a compor um funk sobre a Covid-19, a doença provocada pelo vírus: “Corona tá na pista, e eu vou ficar em casa”, cantam os versos. No Twitter, todo o material é agrupado sob a hashtag #COVID19nasFavelas.
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A mobilização tenta preencher uma lacuna já diagnosticada por especialistas em saúde pública e por moradores das periferias urbanas: “As medidas de prevenção anunciadas pelo governo são pensadas para as classes média e alta”, diz Raull Santiago, um dos criadores do gabinete de crise do Alemão e cofundador do Coletivo Papo Reto, que reúne comunicadores da favela. As recomendações, diz ele, deixam em segundo plano as populações mais pobres e periféricas. “Aqui, no Alemão, surgiu o mito de que esse é um vírus de gente rica. Mas a gente sabe que, em breve, as pessoas mais pobres é que vão sofrer as consequências dessa pandemia”, afirma Santiago. O comunicador vive em uma casa pequena, com a mulher e dois filhos. Se um dos quatro for diagnosticado com o novo vírus, ele explica, dificilmente poderá se isolar do restante da família — como recomendam as autoridades de saúde. A proximidade com as casas dos vizinhos cria as condições ideias para a propagação da doença.
A chegada da Covid-19 às favelas é uma preocupação reconhecida pelo governo: “O Rio é uma cidade de complicadíssimo cenário urbanístico. Temos uma quantidade enorme de pessoas em áreas de exclusão social, uma rede de saúde mais frágil”, disse o ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta há duas semanas, durante reunião com parlamentares. São territórios onde as casas aglomeradas criam zonas onde o Sol não penetra, úmidas e por onde o ar circula mal. Propícias à disseminação de doenças respiratórias. E que, já há décadas, convivem com outro mal difícil de conter, e distribuído de maneira desigual nas cidades: a tuberculose. Segundo dados do ministério da Saúde, a incidência da doenças na favela da Rocinha chega a 200 casos a cada 100 mil habitantes.
Hoje, o temor é de que o Sars-CoV-2 se propague pelas favelas em ritmo mais acelerado que em outras áreas urbanas. Apesar do prognóstico preocupante, as estratégias traçadas pelo governo para evitar esse quadro são consideradas inócuas, ou vistas com desconfiança. O desencontro começa pela forma de comunicar. Antes de iniciar os trabalhos, o gabinete de crise do Alemão fez uma rápida pesquisa entre os moradores: “Percebemos que muita gente não tinha tv em casa, e não recebia as orientações mais simples”, conta Camila. A solução veio na forma de um informátivo escrito, e replicado em grupos de whatsapp. O material — reproduzido no final dessa matéria — lista algumas recomendações simples. Como manter as janelas das casas abertas sempre que possível, de modo a arejar os cômodos. A lista foi gravada para ser transmitida nas rádios comunitárias da região.
Há deslizes mais graves, segundo os membros do gabinete de crise. Aos moradores do Alemão, incomoda a política adotada por várias prefeituras do país de diminuir a oferta de ônibus ou outras formas de transporte público: “Muitos dos moradores da favela são autônomos ou diaristas. São pessoas que não conseguiram parar de trabalhar”, conta Camila. Conforme a oferta de transporte cai, aumenta a lotação dos ônibus que levam os moradores da região para os outros bairros da cidade.
Causou furor, ainda, o plano estudado pelo governo federal de encaminhar moradores de favela e pessoas de baixa renda a navios, para ser tratados contra o novo vírus. A ideia, segundo o governo, é atender casos leves, que não necessitem de UTI, mas para os quais se recomenda isolamento. “Essa perspectiva é muito assustadora”, diz Santiago. “Além de sofrer com o vírus, seremos arrancados de nossas realidades.”
A crÍtica também recai sobre uma portaria,editada pelos ministros da Saúde e da Justiça e Segurança Pública, que autoriza o uso da força policial para manter, em casa, pessoas diagnosticadas com o Sars-cov-2. Para o pesquisador Fransérgio Goulart, ativista do Movimento de Favelas, o texto pode justificar casos de truculência policial contra populações periféricas: “Dificilmente a polícia vai ser usada contra o morador de Copacabana”, diz Fransérgio. “Historicamente, a população negra e periférica é alvo da violência policial”. Segundo o pesquisador, a portaria representa a “materialização do Estado penal”, em que as violações de direitos são levadas a cabo pelas forças policiais, com o aval do executivo e do judiciário.
A desconfiança tem respaldo na história: durante as sucessivas epidemias vividas pelo Rio de Janeiro no início do século XX, era comum que os governos da época adotassem medidas autoritárias e pouco adequadas para a população mais pobre. “Para conter a febre-amarela, por exemplo, o governo mandava nebulizar casas com veneno, para matar os mosquitos. Nos bairros ricos, as pessoas podiam ir para suas chácaras. Os pobres não tinham essa opção”, conta a professora Dilene do Nascimento, pesquisadora da Fundação Oswaldo Cruz e especialista na história das epidemias. A condução inadequada das crises sanitárias levou à eclosão de levantes populares, como a revolta da vacina de 1904. “Justificava-se o autoritarismo com o argumento de que, de outra forma, o povo não seguiria as recomendações do governo”, afirma Dilene. “Quando, o mais adequado, seria abrir vias de diálogo. Para criar estratégias adequadas para cada população”.
Na atual crise, enquanto o diálogo não acontece, os moradores do Alemão se resolvem como podem — e tentam ajudar outras comunidades a se organizar. À hashtag #covid19nasfavelas uniu-se uma segunda, #covid19nasperiferias: “O conceito de periferia é mais comum em outros pontos do Brasil, e a ideia é adaptar a experiência daqui a outras partes do país”, explica Raull Santiago. Além do Gabinete de Crise, Santiago participa de outros grupos semelhantes formados por comunicadores populares e lideranças periféricas, que se organizam para replicar o trabalho conduzido no Alemão.
Camila, a articuladora inicial do grupo, tenta acompanhar as movimentações à distância. Com histórico de rinite alérgica, e sofrendo de uma gripe que custa a passar, ela e os três filhos tentam respeitar uma quarentena auto-imposta, para mitigar riscos. É um desafio manter o isolamento na casa pequena de três cômodos – “padrão favela”, nas palavras dela – onde a família vive. “As crianças ficam entediadas, e são obrigadas a se afastar dos avós. É difícil. Mas é importante”, resume. “Pela nossa saúde e para contribuir com o coletivo”.
As recomendações do Gabinete de Crise
– Lave bem e frequentemente as mãos com água e sabão. Não sendo possível, utilize álcool em gel.
-Se você tem água em casa, seja solidário e coloque uma mangueira disponível para seu vizinho que não tem
-Evite apertos de mão, beijos e abraços. O ideal é ficar a cerca de dois metros de distância de quem estiver tossindo ou espirrando
-Ajude os idosos. Eles são os mais frágeis nesse momento.
-Evite grandes aglomerações: saia na rua para fazer apenas o indispensável, como compras ou ir ao médico
-Deixe sua casa bem arejada, com janelas abertas e ventiladores ligados
-Desinfete com frequência os móveis e superfícies de sua casa
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