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matéria atualizada em 16/09/2024
A cada seis horas, uma mulher foi morta no Brasil em 2023. A maioria foi assassinada por um homem que fazia parte do seu círculo familiar ou de amizades: um companheiro, irmão, pai ou vizinho.
Os dados são do Fórum Brasileiro de Segurança Pública e indicam que 1467 mulheres foram mortas no Brasil no ano passado por questões de gênero.
Segundo o Mapa da Violência — uma pesquisa realizada em 2015 — essas estatísticas colocam o país em posição de destaque em um ranking trágico: somos o quinto país do mundo em número de feminicídios.
Um feminicídio acontece quando uma mulher é assassinada simplesmente por ser mulher. “O principal contexto desse crime é o da violência doméstica, das relações afetivo-conjugais”, afirma a socióloga Jolúzia Batista, assessora do Centro Feminista de Estudos e Assessoria (Cfemea).
“Frequentemente, ele envolve um processo de desqualificação da mulher, de misoginia”.
O termo passou a figurar no código penal brasileiro em 2015, como um qualificador do crime de homicídio. Desde então, o número de feminicídios registrados no Brasil disparou.
Eles eram 926 em 2016; chegaram a 1350 em 2020. Há duas razões possíveis para essa escalada.
De um lado, conta Jolúzia, organizações feministas e de defesa de direitos das mulheres trabalharam, nos últimos anos, para visibilizar as violências sofridas pelas mulheres. “É possível que as mulheres estejam denunciando mais”, diz ela.
Mas o aumento reflete, também, a guinada conservadora vivenciada pela sociedade brasileira em anos recentes.
“Há uma onda que tenta recolocar as mulheres no âmbito privado. Redomesticar nossos corpos”, diz a ativista. “E há um desmonte da rede de serviços [ para atender mulheres vítimas de violência]”.
Jolúzia explica que o feminicídio costuma ser um crime previsível: ele é o lance final de uma sequência de agressões. “É um processo que, muitas vezes, começa com a violência doméstica e familiar. Com a violência psicológica e patrimonial. Com uma série de ataques à existência daquela mulher, de rebaixamento da sua auto-estima”.
Evitá-lo exige a criação de políticas de prevenção. Segundo a ativista, o Brasil segue na direção oposta, com propostas limitadas à punição dos agressores. “Não é o aumento da pena que vai diminuir os casos.
Precisamos de recursos para aumentar a rede de atendimento, e de uma ampla campanha de conscientização de que não é o assassinato de mulheres que vai resolver problemas de ordem afetivo-conjugal”.
Brasil de Direitos: O que é feminicídio?
Jolúzia Batista: É o assassinato de mulheres pela condição de ser mulher. O crime de feminicídio acontece por razões de gênero, e o principal contexto dele é o da violência doméstica, das relações afetivo-conjugais, também da violência física e violência moral.
No Brasil, o feminicídio surge como um qualificador do crime de homicídio a partir da Comissão Parlamentar Mista de Inquérito (CPMI) que aconteceu entre 2012 e 2013 para apurar crimes e violências contra a mulher.
É possível prevenir um feminicídio?
O feminicídio é a culminância de uma situação de violência progressiva. Antes dele, você tem uma situação de violência doméstica, psicológica, patrimonial. Há uma série de ataques à existência daquela mulher, de rebaixamento da sua auto-estima. A violência contra a mulher no Brasil, um país de herança colonial e racista, se expressa como uma forma de castigo.
Como assim?
Há mulheres que são mortas porque foram proibidas, pelos maridos, de usar certos tipos de roupa. Porque foram proibidas de cortar o cabelo. Assim como as crianças levavam surras corretivas nós, mulheres, também apanhamos. Nas ruas ou dentro de casa, apanhamos de companheiros, pais, irmãos.
Basta ter uma presença patriarcal dominante nesses arranjos para que essa figura se coloque como o defensor de uma punição que nós supostamente merecemos por ter descumprido algum código moral.
A lei do feminicídio foi promulgada em 2015, e incluiu o assassinato de mulheres no rol de crimes hediondos. Desde então, houve avanços?
Essa conquista trouxe fôlego ao debate. Amadureceu o debate sobre a punição a esses crimes, e também sobre as medidas de proteção e segurança que podem ser oferecidas às mulheres vítimas de agressão.
É importante destacar que, apesar disso, ainda hoje há resistência em qualificar um homicídio como feminicídio. A sociedade brasileira é profundamente machista.
Apesar da lei, o número de feminicídios disparou nos últimos anos. Qual o problema?
Para quem acompanha esses número de perto, há sempre uma dúvida: as mulheres passaram a denunciar mais, ou o número de crimes de fato aumentou? Nos últimos anos, a gente conseguiu dar maior visibilidade a essa discussão. Mas, sem dúvida, desde 2018, o Brasil viu explodir o número de feminicídios.
Estamos vivendo uma grande ofensiva conservadora antidireitos. A estrutura machista da sociedade se sente ameaçada pelos avanços conquistados pelas mulheres nas últimas décadas. Há uma onda que tenta recolocar as mulheres no âmbito privado. Que tenta redomesticar nossos corpos.
Nos últimos anos, houve aumento considerável de feminicídios, de estupros e de abusos, inclusive de crianças, dentro das famílias. Esse processo é incentivado por um discurso ofensivo e misógino que vem do atual governo brasileiro.
Como reverter esse quadro?
É preciso trabalhar em campanhas preventivas. Inclusive nas escolas. A escola é um lugar central para que a gente possa trabalhar igualdade de gênero, o não sexismo, a superação do racismo.
Mas vários desses temas estão blindados, hoje, no ambiente escolar. Em lugar disso, se fala muito sobre aumento de punições.
Atualmente, há no Congresso Nacional cerca de 100 projetos de lei para mudar a Lei Maria da Penha. Pelo menos 30 deles falam sobre aumento de pena para agressores. Isso não resolve o problema.
O aumento da penas não diminui o número de casos. São necessários aportes de recursos orçamentários para aumentar a rede de atendimento [ à mulheres vítimas de violência].
E uma ampla campanha de conscientização de que não é o assassinato de mulheres que vai resolver problemas de ordem afetivo-conjugal. A gente precisa ajudar aos homens brasileiros a expandir um pouco mais a sua compreensão do que é o existir na sua masculinidade.
Foto de topo: Mídia Ninja
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