Brasil de Direitos
Tamanho de fonte
A A A A

O que é necropolítica

Rafael Ciscati

8 min

Imagem ilustrativa

Navegue por tópicos

Em 2003, o filósofo camaronês Achille Mbembe publicou um ensaio que se tornaria célebre. Professor da Universidade de Witwatersrand, na África do Sul, Mbembe é um dos maiores especialistas da atualidade em África pós-colonial.

No texto, de pouco mais de 30 páginas, se dedicou a uma tarefa árida: examinar como os governos administram a morte. A isso, deu o nome necropolítica.

>> Em meio a pandemia, aumenta número de mortos em operações policiais no Rio de Janeiro

O conceito descreve como, nas sociedades capitalistas, instituições — como governos — promovem políticas que restringem o acesso de certas populações à condições mínimas de sobrevivência. Criam regiões onde a vida é precária e onde a morte é autorizada. Ao fazer isso, definem quais indivíduos devem viver, e quais devem morrer — e como deve ser sua morte.

>>George Floyd, Barack Obama e a segurança pública no Brasil

Ao longo dos 17 anos seguintes, o conceito trabalhado no texto de Mbembe explodiu em popularidade, e recebeu contribuições de outros pensadores.

A necropolítica se tornou um instrumento político e intelectual importante, muito presente em movimentos sociais, ações e intervenções”, conta o psicanalista Fábio Luis Franco, doutor em filosofia pela Universidade de São Paulo.

>>Depois da abolição, Estado sofisticou mecanismo de exclusão, diz historiadora

No Brasil, o conceito é mais comumente utilizado para analisar políticas de segurança pública e a atuação das polícias. Segundo Franco, é relevante que o termo tenha sido cunhado por um filósofo nascido na chamada periferia do capitalismo. Nesses territórios — que incluem o Brasil — os efeitos da necropolítica são mais visíveis:

“Nesses lugares, fica claro que, para sobreviver, o capitalismo precisa produzir zonas de exclusão e de morte”.

É o caso das favelas cariocas, por exemplo. Onde, sob o pretexto de combater o tráfico de drogas, o Estado promove ações policiais que culminam na morte de pessoas negras e pobres.

>> O que é: racismo estrutural

Desde meados de março, quando a Organização Mundial da Saúde declarou pandemia pelo novo coronavírus, o número de buscas pelo significado de necropolítica disparou no Google.

Em meio à pandemia, conta Franco, o conceito ajuda a entender como o Estado — e o mercado — administram a morte ao definir quem terá acesso aos melhores serviços de saúde a tempo de se salvar.

No Brasil, pessoas negras têm chances maiores de ser vítimas do novo coronavírus. Segundo boletim epidemiológico do ministério da Saúde do dia 8 de maio, pretos e pardos já somam mais da metade (50.1%) das vítimas da nova doença.

Brasil de Direitos: O que significa administrar a morte e como o Estado faz isso?

Fábio Luís Franco: É muito relevante que o conceito de necropolítica tenha sido desenvolvido por um pensador nascido na periferia do capitalismo.

Esse aspecto é importante porque indica que a necropolítica se deixa ver mais claramente, nesses contextos em que o capitalismo precisa, para sua reprodução, produzir zonas de violência e de morte.

Isso pode parecer um pouco abstrato mas, se formos olhar historicamente- que é o que o Mbembe faz no seu texto — identificamos que o capitalismo europeu só foi possível graças à política colonialista na América, na África e na Ásia.

Ele só foi possível graças à dominação de áreas extra-europeias, e à escravização de povos tradicionais ou negros que foram submetidos a condições mortíferas. Para se reproduzir, o capitalismo precisa criar essas zonas onde a vida está por um fio e onde a morte se produz.

Na sociedade contemporânea, há exemplos dessa administração da morte?

Quando se pensa em necropolítica, em primeiro lugar se pensa no Estado que mata. A morte do George Floyd, em razão da atuação da polícia norte-americana, ou mesmo o genocídio da população negra periférica no Brasil, deixam ver o quanto o Estado é um agente necropolítico fundamental.

Mas, chamo a atenção para outros aspectos da necropolítica, que o Mbembe não explicita tanto, e que ajudam a entender o que significa administrar a morte. Administrar a morte é gerir a distruibuição da mortalidade e das formas de morrer de maneira diferencial na sociedade. E a pandemia de coronavírus deixa ver como isso acontece.

Hoje, em São Paulo, as populações negras são as mais atingidas pela letalidade da Covid-19. Ainda que as regiões mais ricas da cidade sejam aquelas com maior índice de contaminação, é a Brasilânida (bairro de periferia na zona norte da cidade) que concentra o maior número de mortos.

Essa é uma maneira muito precisa de ver a administração da morte — o acesso que a população de Pinheiros ou dos Jardins tem aos serviços privados de saúde possibilita que ela se trate e que a letalidade do vírus seja menor nesses bairros nobres.

Enquanto isso, regiões de menor contágio têm letalidade maior, porque faltam recursos e a população depende do sistema público de saúde precarizado. O Estado ora age diretamente produzindo a morte, ora age gerindo a distribuição da riqueza, da saúde pública, da assistência social.

Ao fazer isso, cria condições potencialmente mortíferas para determinados setores da sociedade.

O Estado é o único ator a fazer essa administração da morte?

A necropolítica também possui uma dimensão mais complexa, que compreende as relações entre o Estado e o mercado, o capital. A pandemia também deixa essa relação mais explícita. Pense, por exemplo, nos entregadores de aplicativos.

Durante a pandemia, eles trabalham muito mais que antes, para ganhar muito menos. Diante da demanda alta do mercado por esse tipo de serviço, empresas como Rappi e Uber Eats contratam mais, criando um exercito de reserva gigantesco, que fica inoperante. Estudos mostram que essas empresas crescem algo em torno de 300% nesse período.

Como há mais entregadores disponíveis, o número de entregas feitas por cada entregador diminui. Para trabalhar, essas pessoas recebem uma máscara e um frasco de álcool em gel. É insuficiente para protege-los de um vírus mortal.

O presidente da Rappi no brasil não está assassinando seus trabalhadores. Mas esses entregadores estão expostos as condições mortíferas. Essa é uma outra maneira de pensar a necropolítica — como a distribuição desigual de condições mortíferas.

Ao promover a morte, o Estado deixa de cumprir seu papel? Numa situação ideal, caberia ao Estado promover a vida?

Não sei se é possível dizer qual o papel verdadeiro do Estado. O Estado não é um bloco monolítico. Ele é marcado por interesses , conflitos e jogos de força. É crivado por interesses divergentes.

Historicamente, sempre foi aparelhado por interesses particularistas, que utilizam as forças do Estado para beneficiar grupos específicos. Ao longo dos anos, houve avanços e conquistas de direitos. Mas essas não foram benesses concedidas por um Estado que cumpria seu papel primordial. Foram conquistas produzidas depois de muita luta e disputas envolvendo movimentos sociais.

O Estado e o mercado estão, historicamente de mãos dadas. Quando isso não acontece, quando o Estado cria politicas de outras natureza, é porque houve disputas e mobilização social.

Racismo e necropolítica estão sempre associados?

Necropolitica e racismo andam de mãos dadas. Inclusive, o Mbembe, numa linha que remonta ao filósofo martinicano Frantz Fanon, diz que a necropolitica estabelece uma linha divisória entre o que é ser e o que não é ser.

O racismo estrutural participa do estabelecimento dessa linha de demarcação, entre os que existem e os que não existem. Entre as pessoas que importam e as que não têm importância. E aquelas pessoas que não existem, nem podem ser consideradas propriamente mortas.

Já falamos do fazer morrer e da produção de condições mortíferas. Mas há um terceiro aspecto da necropolítica, que é o de deixar desaparecer.

É ilustrativo pensar isso à luz do encobrimento dos dados que o governo federal vem realizando desde que decidiu mudar os critérios de contabilização de mortos pela covid-19.O que são essas mortes que não são computadas? Que desaparecem sem visibilidade?

Quando o presidente diz que esse é o destino de todo mundo, diz que ele não é coveiro, ele declara que essas mortes também não são numeradas. Afirma que aquelas que morreram nem podem ser considerados seres cuja morte pode ser singularizada.

 

Você vai gostar também:

Imagem ilustrativa
Combate ao racismo

Maria Edhuarda Gonzaga *

3 abolicionistas negros que você precisa conhecer

Para entender

10 min

Imagem ilustrativa
Mulheres

Rafael Ciscati

Mulheres são principais vítimas de violência, mas país pensa pouco em prevenção

Entrevista

11 min

Imagem ilustrativa
Combate ao racismo

Maria Edhuarda Gonzaga *

Peça de Abdias Nascimento chega ao Brasil 30 anos depois de publicada nos EUA

Notícias

8 min