Os rastros da Covid-19 e o mundo que virá
Passada a pandemia, o mundo não voltará ao normal. Que mundo queremos construir? Para criá-lo, precisamos dar ouvidos aos saberes ancestrais
Maria Teresa Ferreira
3 min
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Desde a emergência do novo coronavírus, no começo desse ano, o mundo vive um hiato entre o que é conhecido e o que será preciso construir. As sociedades em que vivemos, desiguais, que avançavam de maneira destrutiva sobre a natureza, criaram as condições ideais para a propagação do novo vírus. Esse é o recado da pandemia, essa é nossa lição de casa. Mas, por onde começar?
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Primeiro, um diagnóstico. Os erros, afinal, são antigos. Se formos procurar culpados, podemos começar — sendo generosa — pelo feudalismo, quando surge o germen da propriedade privada. Pensando melhor, ainda antes disso. Acho que podemos responsabilizar também o patriarcalismo, a heteronormatividade. A escravidão, as guerras, as ditaduras, o holocausto, a bomba atômica: temos um longo histórico de violência. Tudo isso contribuiu para as coisas como são.
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A humanidade gestou o Covid-19 e, como todo processo de gestação uma hora, a criança nasce. Mas essa cria nasceu bastarda. De pai e mãe
indefinidos, ela corre o mundo e de boca em boca, vamos dizendo dizendo uns aos outros: “Fiquem em casa, ele pode te pegar!”.
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Esse mantra faz a Covid-19 parecer uma espécie de Cuca. Cuca, aquele personagem do Sítio do Pica Pau Amarelo. Só que uma Cuca real, e mortífera. Para escapar à primeira, bastava correr para o colo da mãe, que acolhe o pequeno assustado e bota para ninar. A Cuca do momento é invisível aos olhos. Vive nos botões dos elevadores, no corrimão dos prédios, nas cédulas de qualquer valor, no saco de pão, no chão que pisamos, no ar, a gente nem sente ele chegar. A Cuca, grande, pesada e verde onde quer que esteja no imaginário da gente, sucumbiu, tomada de medo e tristeza. Nós e a Cuca sucumbindo, dia após dia, sem saber para onde ir e nem o que fazer, com todas as questões que vieram a baila.
Por onde passa, a Covid-19 vai deixando um rastilho de pólvora. A doença evidencia nossas desiguales e violências cotidianas. O momento é difícil —as pessoas estão angustiadas, temendo pelo amanhã. Mas, se quisermos que o amanhã seja melhor, vamos ter de começar a gestá-lo. É preciso trocar o pneu com o carro andando.
É preciso buscar um novo olhar para nós e para o mundo. A varinha mágica, a bola de cristal, dificilmente nós trarão respostas. Acho que os astros podem até nos apontar caminhos, mas poucos acreditam neles, pena. O que vai construir novos caminhos, são novas atitudes, novos pensamentos. Ou melhor, abrirmos mão de verdades individuais em detrimento de verdades coletivas. Precisamos dar lugar aos saberes ancestrais da terra e dos povos, dividir o pão e compartilhar o fruto, como canta tão lindamente Milton Nascimento.
Foto de topo: Pixabay
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