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Para ter transição justa, Brasil precisa proteger territórios tradicionais

Maria Edhuarda Gonzaga *

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foto de topo: Divulgação/ Airan Albino/ Fundo Brasil

Chuvas torrenciais no Sul, seca no Norte. Nos últimos meses, temperaturas extremas no Brasil fizeram as conversas sobre a crise climática crescerem em popularidade e urgência. Se quiser fazer uma transição eficiente para um modelo econômico que emita menos gases de efeito estufa, como o carbônico, o Brasil terá de aprender a defender, e a respeitar, os territórios ocupados por populações tradicionais, como indígenas e quilombolas.  “A realização da transição justa começa com o governo, em primeiro lugar, reparando tudo que fizeram conosco na escravidão”, apontou Hilário Moraes, liderança quilombola do Pará, durante o painel Mudanças climáticas e trabalho digno: reflexões sobre transição justa a partir da base.

O evento foi realizado pelo Labora, fundo de apoio ao trabalho digno da fundação Fundo Brasil de Direitos Humanos no último dia 05 de outubro. Reuniu lideranças de todo o país para discutir o tema da transição justa. Em comum, os debatedores apontaram a necessidade de garantir a proteção ao território. 

Além de Hilário, que é articulador da Malungu – uma coordenação de comunidades quilombolas do Pará –  participaram da conversa Val Terena, coordenadora-executiva da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB); Dandara Rudsan, assessora de projetos da Iniciativa Negra por uma Nova Política sobre Drogas; Jade Percassi, integrante do Coletivo Nacional de Cultura do MST; e Miriam Cabreira, do Sindipetro. A mediação coube a Fátima Mello, representante da Fundação Ford e do Fundo Labora.

Segundo o último relatório da Comissão Pastoral da Terra (CPT), quase 78% dos conflitos ocorridos no Brasil em 2022 foram pela terra. Na avaliação de Hilário, a proteção do território é uma forma de preservar os saberes do seu povo e também um modo de manter a floresta viva. “Queremos ser pagos e muito bem pagos pelo serviço ambiental que prestamos por mais de 500 anos nesse país.”

Uma das principais barreiras contra o desmatamento no Brasil foi a demarcação de terras de populações tradicionais. De acordo com dados do MapBiomas, territórios indígenas perderam apenas 1% da sua vegetação nativa nos últimos trinta anos. Nas áreas privadas com floresta, a porcentagem sobe para 20,6%. Val Terena, da Apib, reforça que a crise climática é resultado também do desmatamento realizado pelo agronegócio,  e a participação dos povos indígenas nesse debate é fundamental. “Estamos avisando há muito tempo as consequências da ganância do homem branco. O ar que preservamos dentro do nosso território é o ar que vocês respiram também. Nós pensamos que não é somente retomar os territórios, mas em como fazer com que aquele território continue dando vida.”

 

Essa tradição de preservar a natureza dos seus territórios faz das comunidades indígenas espaços com baixa emissão de dióxido carbono. O gás é prejudicial à atmosfera do planeta e sua emissão excessiva leva ao aumento da temperatura global. Queimadas florestais, desmatamento e a queima de combustíveis fósseis, como petróleo e carvão mineral, são os principais fatores responsáveis pela quantidade de gás carbônico no ar. Com os debates sobre mudança climática dominando as conferências internacionais, o mercado de carbono tornou-se uma saída para muitos países e empresas compensarem seus impactos no meio ambiente. 

 

Ele consiste em comercializar créditos de carbono. A cada tonelada de dióxido de carbono que deixa de ser emitida, comunidades e empresas podem receber um crédito de carbono. Então, como uma moeda, países e empresas que possuem uma taxa elevada de emissão do gás compram créditos de carbono para compensar suas emissões. No início, as negociações eram entre países. Nos últimos anos, empresas começaram a aderir à prática. Recentemente, o Senado brasileiro discute uma proposta que trata sobre a geração desses créditos em territórios tradicionais. Assim, povos indígenas, quilombolas e extrativistas podem aumentar seus recursos comercializando-os, através de entidades e organizações que os representam. 

Val Terena conta que o projeto precisa se popularizar primeiro, antes que as comunidades aceitem ofertas das indústrias. Apesar de se mostrar aberta a possibilidade, ela reforça a importância de dar protagonismo às lideranças, uma vez que elas conhecem as melhores formas de se desenvolver. “Temos que tornar a discussão mais ampla e levá-la para dentro das comunidades. Ela não pode ser feita a portas fechadas somente com empresários. Precisamos levar para as lideranças para que elas digam se isso será benéfico para o território. Tem povos indígenas que ainda não sabem das possibilidades [do mercado de carbono].” 

Dandara Rudsan, da Iniciativa Negra por uma Nova Política sobre Drogas, pontuou que os movimentos sociais estavam, na verdade, resistindo a transição justa da maneira como está sendo conduzisa. “Para nós, é impossível capitalismo e economia limpa conviverem no mesmo lugar. E o conceito de transição justa foi parido pela academia, que é uma estrutura capitalista e branca. Para nós, o campo sempre teve uma economia justa. O capitalismo nos abarca dentro da sua estrutura, precariza nossos meios de vida e agora nos diz que precisamos transitar para uma economia mais justa.”

Para ela, a transição justa passa necessariamente pelo resgate das maneiras de sobrevivência dos povos tradicionais e das comunidades familiares. Além de refazer a teoria como está sendo debatida, Dandara acredita ser fundamental buscar objetivos que se alinhem entre as organizações. “Precisamos achar um ponto que nos une, porque nós nos reproduzimos de maneira individual, mas resistimos coletivamente. Temos que tirar da cabeça a ideia de que estamos disputando narrativas entre nós e caminhar juntos.”

A união entre movimentos sociais pela defesa do território passa pelo tema da agroecologia, como defende Jade Percassi, integrante do Coletivo Nacional de Cultura do MST. “É a construção de um pensamento estratégico sobre algo que é estrutural. Os camponeses que se reorganizaram pós ditadura militar estão dizendo sobre a importância de garantir a terra há 40 anos, os petroleiros há 70 anos, os indígenas há 200 e os quilombolas há 500. A transição justa para nós passa pelo processo de pensar um outro paradigma de desenvolvimento, que inclui as demarcações, a reforma agrária e o tipo de alimentos que produzimos no nosso país.” 

Essa reivindicação tem um cenário conflitante no Brasil, em específico. Segundo o último levantamento da Business and Human Rights Resources, o país ocupa o primeiro lugar no ranking das nações mais perigosas do mundo para ativistas ambientais e dos direitos humanos. O relatório colheu registros de agressões a defensores que iam de encontro a projetos empresariais e corporativos. Foram listados 63 ataques que se manifestaram em assédio judicial, campanhas de difamação, ameaças de morte, violência física e até assassinato. 

A educadora sugere, então, que a transição justa pense em um processo redistributivo de renda e alimentação unido à educação popular. “O bom e velho trabalho de base”. A erradicação da fome e a comida sem veneno, para ela, é “uma disputa com nossos corpos contra a crise climática porque estamos nos contrapondo ao modelo de desenvolvimento do campo imposto pelo agronegócio que está causando tudo isso.” 

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