Países ricos doaram mais para guerra às drogas do que para combate à fome
Um novo relatório mostra que países da OCDE, como os EUA, usaram fundos de combate à pobreza para financiar políticas antidrogas. Valor chega a quase US$1 bi em 10 anos
Rafael Ciscati
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Treinamento militar, investigações criminais e projetos destinados a controlar o consumo de narcóticos. Um relatório, recém-divulgado, indica que, nos dez anos entre 2012 e 2021, países membros da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) doaram US$974,6 milhões a nações mais pobres para financiar ações de combate à venda e consumo de drogas. Nas planilhas da OCDE, os gastos figuram numa classificação que inclui dinheiro destinado ao combate à pobreza, ou para financiar programas educacionais e de vacinação.
O dado é da Harm Reduction International (HRI), uma organização britânica que defende a redução de danos – em lugar do proibicionismo – para combater os prejuízos do consumo abusivo de drogas. Na análise do grupo, em 2021, os recursos destinados pelas nações ricas para financiar a guerra às drogas (US$323 mi) ultrapassaram o valor doado à programas de alimentação escolar (US$286 mi), ou para apoiar direitos trabalhistas (US$198 mi ).
Quem financia a guerra às drogas
O relatório do HRI aponta que, desde o início do século XX, países desenvolvidos, como EUA e Reino Unido, tentam influenciar as políticas de drogas adotadas por nações mais pobres. A lista de substâncias proscritas variou conforme a época, e de acordo com os interesses dos países centrais. “Os poderes coloniais europeus introduziram legislações anti-drogas em muitos lugares. Quando lhes convinha. Maconha, cocaína e ópio já foram, em diferentes períodos, produtos negociados por essas nações”, escrevem os pesquisadores. Hoje, ao menos 115 países em todo o mundo criminalizam o consumo de drogas para consumo pessoal.
O alcance dessa retórica proibicionista aumentou especialmente a partir da década de 1970. Foi quando o presidente norte-americano Richard Nixon declarou, durante um discurso, que as drogas seriam consideradas “o inimigo público número 1” do país. O discurso de Nixon inaugurou a chamada doutrina da guerra às drogas que, com o patrocínio do governo americano, se expandiu pelo mundo. Ainda nos anos 1970, os EUA criaram a Drug Enforcement Administration (DEA), um órgão dedicado a reprimir o consumo de narcóticos. Em 2022, o DEA tinha 93 escritórios espalhados por 70 países – e uma longa lista de ações conduzidas em parceria com forças policiais de países subdesenvolvidos.
Análises internacionais sustentam que o saldo da guerra às drogas foi negativo, em especial para populações racializadas. O relatório do HRI lembra, por exemplo, que em 2020, o DEA treinou policiais vietnamitas acusados de cometer “inúmeros abusos”, como prisões arbitrárias, tortura e assassinatos. O combate ao narcotráfico é também frequentemente usado para justificar ações militarizadas, que resultam na morte de pessoas negras em comunidades periféricas. No Brasil, mudanças recentes na política de drogas foram acompanhadas por uma disparada no número de pessoas encarceradas. Em especial, pessoas negras.
Frente aos prejuízos, o Alto-comissariado da das Nações Unidas para os Direitos Humanos recomendou, em março deste ano, que a doutrina de guerra às drogas fosse abandonada. “Se é verdade que as drogas destroem vidas, o mesmo pode ser dito a respeito da política de drogas”, escreveu.
O relatório da HRI sugere que, entre 2012 e 2021, os países da OCDE seguiram na direção oposta, e financiaram ações que reforçaram o proibicionismo.
Para chegar a essa conclusão, os pesquisadores analisaram as doações que a OCDE classifica como ODA. A sigla pode ser traduzida como “apoio formal ao desenvolvimento”.
Teoricamente, o orçamento que os países reservam para os ODA deve ser doado a nações em desenvolvimento para promover “o bem-estar de suas populações”. Nos anos 1990, esse escopo foi ampliado, e passou a autorizar gastos em ações para “controle de narcóticos”. A partir daí, o uso desse dinheiro se diversificou. Passou a ser utilizado para financiar o treinamento de policiais, campanhas de combate ao consumo de drogas e programas educacionais sobre o tema.
Na década analisada pelo HRI, 92 países receberam dinheiro destinado ao controle de narcóticos. Os principais doadores foram EUA, a União Europeia, Japão e o Reino Unido. O volume de recursos doados aumentou com os anos:ao todo, foram doados US$974,6 milhões. Desse montante, 61% foram doados nos últimos cinco anos do período analisado, entre 2017 e 2021.
Durante a década estudada, ao menos US$70 milhões foram direcionados a países onde crimes relacionados a drogas podem ser punidos com a morte. Caso da Indonésia, onde 89 pessoas foram sentenciadas à morte, em 2021, por condutas envolvendo substâncias proscritas.
Na avaliação do HRI, essas doações contrariam o compromisso assumido pelos países da OCDE, de promover o bem-estar das populações e defender os direitos humanos. Os autores argumentam que “ a guerra às drogas já resultou em uma série de violações aos direitos humanos, tais como perfilamento racial, detenção em massa, sentenças desproporcionais, detenções ilegais e situações em que crianças e adolescentes foram julgadas como adultos”.
Para os pesquisadores, os países doadores deveriam deixar de usar seus orçamentos para financiar práticas que resultam em violência contra populações em países subdesenvolvidos. E se concentrar em apoiar soluções amparadas pela ciência. “Há evidências, vindas de todo o mundo, que mostram como as estratégias de redução de danos trazem benefícios significativos para o bem-estar e a saúde [ das pessoas que usam drogas]”, escrevem os pesquisadores. “Apesar disso, essas estratégias continuam a receber financiamento insuficiente”.
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