Por que Bolsonaro foi denunciado por genocídio? Entenda a ação em 5 pontos
Em documento enviado ao Tribunal Penal Internacional, organizações indígenas pedem investigação, e apontam desrespeito a direitos territoriais entre violações do presidente
Rafael Ciscati
8 min
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A denúncia enviada pela Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) na última segunda-feira (9) ao Tribunal Penal Internacional (TPÍ) em Haia começou a ser preparada um ano atrás. Na peça, que acusa o presidente Jair Bolsonaro de genocídio e pede que a Corte abra uma investigação, a organização afirma que o mandatário atua, desde que chegou ao Planalto, para “construir um país sem indígenas”.
As bases para o texto foram lançadas em agosto passado. Na ocasião, a Apib levara ao Supremo Tribunal Federal (STF) uma ação que cobrava do Estado brasileiro a adoção de medidas para conter o avanço da pandemia de covid-19 nas aldeias. A ação foi bem-sucedida (contamos a história do processo na Brasil de Direitos) mas logo ficou evidente que não bastaria. “Na mesma época, começamos a receber relatos de lideranças indígenas sobre casos de invasões a territórios e processos judiciais contra áreas de retomada”, conta a advogada Samara Pataxó, assessora jurídica da Apib e uma das lideranças por trás do comunicado ao TPI. “Internamente, as tentativas de investigar os atos do presidente eram barradas. Entendemos que era preciso partir para os fóruns internacionais”.
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O texto foi sendo construído ao longo dos meses seguintes. Contou com a colaboração de lideranças indígenas de todo o país, que enviaram relatos de violações por meio de um canal de comunicação criado pela Apib. O time contou também com a colaboração da Comissão Arns e do Coletivo de Advocacia em Direitos Humanos (Cadhu). Em 2019, essas duas organizações já haviam enviado um comunicado ao TPI acusando Bolsonaro de crimes contra a humanidade e de genocídio das populações indígenas. O pedido de investigação tramita no Tribunal sem data para ser avaliado pela Corte.
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A grande preocupação da equipe da Apib, conta Samara, estava em reunir provas contundentes de que os atos do presidente, pessoalmente, configuravam genocídio. “Nos últimos anos, muito se falou sobre esse ser um governo genocida”, afirma. “Era importante demonstrar que nossa afirmação não é somente política. Ela está amparada em embasamento técnico”.
O crime de genocídio é bastante específico. Sua definição legal consta no Estatuto de Roma, o documento que criou o Tribunal Penal Internacional. Afirma que genocídio são atos praticados com a intenção de destruir, total ou parcialmente, um grupo nacional, étnico, racial ou religioso. Nesses casos, é importante provar a intencionalidade do ator — demonstrar que agiu de caso pensado.
No comunicado remetido à Haia, a Apib reúne “fatos e afirmações que provam o planejamento e a implementação de uma política anti-indígena explícita, sistemática e intencional conduzida pelo presidente Jair Bolsonaro”, segundo diz o documento.
Um dos pontos principais da denúncia, explica Samara, diz respeito às violações dos direitos territoriais dos povos originários. “Desde a campanha à presidência, Bolsonaro afirma que não vai demarcar nenhum centímetro de terra”, lembra a advogada. Até agora, a promessa de campanha foi cumprida: dados apresentados pela Apib mostram que o atual governo não avançou nas demarcações. Foi o único a agir assim desde a redemocratização.
Além disso, diz a Apib, Bolsonaro permitiu e incentivou a invasão de terras indígenas. Como resultado, disparou o número de garimpeiros ilegais atuando nesses territórios, o que provocou aumento da violência armada contra indígenas, a contaminação de rios pelo mercúrio utilizado na atividade mineraria e a propagação do novo coronavírus nas aldeias. Segundo a Apib, o desrespeito aos direitos territoriais pode selar o desaparecimento dos povos originários: “A presença de invasores acelerou a degradação ambiental significativamente, comprometendo a manutenção do modo de vida indígena, uma vez que a existência física e cultural desses povos depende da floresta, das terras e dos rios, em termos materiais, sociais e simbólicos”.
A esperança da Apib, diz Samara, é de que a pressão internacional contribua para barrar o aprofundamento da crise. Na entrevista abaixo, ela conta detalhes da ação.
Brasil de Direitos: A Apib afirma que existe um genocídio em curso no Brasil. Quais os sinais mais contundentes de que esse crime está acontecendo?
Samara Pataxó: Primeiro, é importante dizer que, nos últimos anos, a palavra genocídio se popularizou muito. É comum as pessoas dizerem que o governo Bolsonaro é um governo genocida. Nossa denúncia não tem apenas um viés político. Ela é delimitada por evidências jurídicas, pautadas no Estatuto de Roma. Esse documento descreve diversas condutas que podem configurar crime de genocídio. Ele acontece, por exemplo, quando um indivíduo causa lesão grave à integridade física ou mental de um grupo específico. Quando subtrai, intencionalmente as condições as condições necessárias à existência desse grupo, até o ponto de ameaçar a vida desses povos. No caso dos crimes de Bolsonaro, um elemento essencial são os direitos territoriais. Além de não demarcar terras indígenas, o presidente incentivou a invasão desses territórios, estimulou a prática do garimpo ilegal e da mineração, e adotou medidas que provocaram destruição ambiental. No documento, mostramos que o presidente, por meio de praticas e discursos, trabalhou para a construção de uma nação sem indígenas.
O TPI julga pessoas, não governos. As políticas indigenistas e ambientais, no Brasil, são de responsabilidade de ministérios e órgãos governamentais. Dá para dizer que Bolsonaro foi pessoalmente responsável pelo seu desmantelamento?
Entendemos que os ministros são subordinados ao presidente. O ex-ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, promoveu ações de desmantelamento das políticas ambientais. Mas respondia ao presidente. Apontamos condutas direta ou idiretamente praticadas pelo presidente, considerando que outros atores, como seus ministros de Estado, colaboraram para esse quadro de destruição.
Vocês falam de enfraquecimento das políticas indigenistas. Pode dar detalhes?
Nesses últimos dois anos, as políticas indigenistas foram se esvaziando. Desde o início do mandato, o presidente toma atitudes para enfraquece-las. Foi o caso, por exemplo, da medida provisória que transferiu a Fundação Nacional do Índio (Funai) do ministério da Justiça para o ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos (a decisão foi, por fim revertida). Mesmo antes de ser eleito, o presidente já falava que não demarcaria nem um centímetro de terras indígenas. Com a chegada da pandemia, esse cenário de destruição se escancarou. A Apib teve de ir ao Supremo Tribunal Federal cobrar ações de contenção da pandemia nas aldeias. Esse conjunto da obra evidencia o enfraquecimento das políticas indigenistas.
Nos últimos anos, muitos direitos foram preservados ou conquistados no Brasil porque a sociedade civil organizada recorreu ao STF. No caso dos direitos indígenas, essa via foi esgotada?
Um dos critérios para o TPI admitir uma denúncia é esse: o esgotamento das vias internas para proteger os direitos que estão sendo violados. As vias internas, como o STF, foram importantes nos últimos anos, mas a gente percebe que elas não dão conta, sozinhas, da gravidade das violações que estamos vivenciando. Não há uma investigação em andamento no Brasil para apurar os impactos da conduta do presidente. Por isso recorrermos aos instrumentos internacionais de proteção.
Essa é a terceira denúncia ao Tribunal Penal Internacional de que Bolsonaro é alvo. As duas primeiras ainda não foram examinadas pela Corte (que, depois dessa exame, decide ou não dar início a uma investigação). O processo é lento?
Foram três denúncias no total e somente uma, feita pela Comissão Arns e pela Cadhu, está sendo processada. A apresentação desses comunicados já tem um impacto. Manda um recado à comunidade internacional de que algo está acontecendo. Se há denúncias, é porque há problemas. Elas chamam a atenção para a luta que a gente trava aqui. Os fatos que sistematizamos na denúncia foram mostrados na imprensa. Dentro e fora do Brasil. A peça tem repercussão jurídica, mas tem também efeitos políticos e econômicos, porque tem um impacto negativo para a imagem do país.
Foto de topo: mídia Ninja
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