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Povos e comunidades tradicionais: entenda o que são

De povos indígenas a apanhadoras de sempre-vivas, povos e comunidades tradicionais se distinguem por sua organização cultural única e pelo forte vínculo com o território

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Rafael Ciscati

13 min

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O pedreiro Marco Antônio Silva de Souza costuma dizer que, “sem exageros”, mora num “pedaço do paraíso”. Quase quatro décadas atrás, Marco nasceu na comunidade de fecho de pasto de Bonito de Cima. 

Localizado no oeste da Bahia, nos arredores da cidade de Correntina, Bonito de Cima compreende uma área do cerrado baiano onde vivem aproximadamente mil famílias. São, na sua maioria, agricultores tradicionais. Famílias que, segundo contavam os avós de Souza, chegaram na região há mais de 4 séculos. E que, nos tempos de seca ou quando falta trabalho, se dedicam a criar algumas poucas reses em terras de uso comum – os tais fechos de pasto. 

São terras ricas em água e que não têm dono: pertencem à toda a comunidade. Sem a vastidão do fecho de pasto – que os moradores também chamam de “gerais”— Souza diz que a comunidade onde ele nasceu e se criou não existiria. “É o fecho de pasto que garante nossa sobrevivência”. 

Por causa de suas particularidades culturais, e do uso comunal que faz do território, a comunidade de fecho de pasto de Bonito de Cima é considerada uma “comunidade tradicional”. 

Trata-se de uma classificação guarda-chuva que agrupa, oficialmente, 28 diferentes segmentos: de povos indígenas e quilombolas a pescadores tradicionais e apanhadores de flores sempre-vivas. “São grupos culturalmente diferenciados, que mantêm uma relação com o território baseada na tradição”, diz o geógrafo André Moraes, do Instituto Sociedade, População e Natureza (ISPN). E que, há gerações, vivem e produzem em harmonia com o meio-ambiente ao redor. “Os conhecimentos desses povos nos dão pistas de como conservar esses biomas. É um conhecimento valioso para toda a sociedade”. 

No começo dos anos 2000, o Estado brasileiro se comprometeu, por meio de um decreto, a proteger e promover a cultura e os direitos dessas populações. Entre o que diz a lei e o que acontece na vida prática, há um abismo. Comunidades como o fecho de pasto de Bonito de Cima enfrentam ameaças como a expansão desordenada do agronegócio, a realização de grandes obras de infraestrutura e o próprio desinteresse do Estado em reconhecer seus direitos territoriais.  No texto a seguir, Brasil de Direitos explica:

– Quem são os povos e comunidades tradicionais

– Quais as principais ameaças enfrentadas por povos e comunidades tradicionais

-Qual a importância de povos e comunidades tradicionais para a preservação ambiental

Povos e comunidades tradicionais – quem são

Em 2007, o governo Lula criou a Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais. Moraes, do ISPN, explica que, em nível federal, ela é  o principal instrumento disponível para promoção e proteção dos direitos dessas populações. Seu funcionamento e objetivos são descritos  no decreto nº 6040, assinado pela presidência da República em fevereiro daquele ano.

Esse mesmo texto se encarrega de definir o que são povos e comunidades tradicionais. Diz o seguinte: são “grupos culturalmente diferenciados e que se reconhecem como tais, que possuem formas próprias de organização social, que ocupam e usam territórios e recursos naturais como condição para sua reprodução cultural, social, religiosa, ancestral e econômica, utilizando conhecimentos, inovações e práticas gerados e transmitidos pela tradição”. 

Nessa categoria, o Estado brasileiro reconhece 28 segmentos: 

-Quilombolas – são remanescentes de comunidades criadas por pessoas que fugiam da escravidão. 

-Povos indígenas – também chamados de “povos originários”, uma vez que viviam nessas terras muito antes da colonização europeia. O Censo de 2020 contabilizou 266 povos indígenas no Brasil. Cada qual com hábitos e tradições próprios. 

-Catigueiros – são povos que vivem na caatinga, o semiárido brasileiro. 

-Cipozeiros – vivem em florestas tropiciais e usam cipós para produzir peças artesanais

-Comunidades de Fundo e Fecho de Pasto – tal qual a comunidade de Bonito de Cima, são formadas por agricultores sertanejos que criam algumas poucas cabeças de gado (ou outros animais) em terras de uso comum. 

-Extrativistas: povos que, ao longo de gerações, aprenderam a explorar os recursos naturais dos territórios onde vivem de modo sustentável. 

-Andirobeiras: são mulheres que coletam as sementes e os frutos da andiroba, uma árvore amazônica.

-Apanhadoras de sempre-vivas: vivem na Serra do Espinhaço, entre Minas Gerais e Bahia. Com as flores sempre-vivas, produzem artesanato.

-Benzedeiros – geralmente mulheres, realizam rituais para curar males do corpo e do espírito

-Caboclos- pequenos agricultores que vivem da exploração sustentável da floresta

-Caiçaras – são pescadores tradicionais do sudeste do Brasil

-Catadores de Mangaba – no Sergipe, se dedicam ao cultivo e coleta da Mangaba.

-Extrativistas costeiros e marinhos – comunidades das reservas extrativistas costeiras e marinhas do Pará

-Faxinalenses – pequenos agricultores, descendentes de europeus, que vivem nos campos do sul do Brasil. 

-Geraiszeiros – vivem nos campos gerais do Cerrado, ao  norte de Minas Gerais, próximo do Rio São Francisco. 

-Ilhéus- habitam pequenas ilhas dispersas pelo litoral brasileiro

-Morroquianos- vivem nas encostas de morros nas metrópoles, em comunidades de favela, e são descendentes de trabalhadores rurais que migraram para as cidades. 

-Pantaneiros- vivem nas regiões alagadas do Pantanal

-Pescadores tradicionais  

-Povo pomerano – descendentes de migrantes vindos do oeste da Alemanha no século XIX. 

-Ciganos – povos originários do norte da Índia que migraram pelo mundo

-Comunidades de terreiro – mantêm tradições de origem africana. Não raro, sofrem discriminação dos praticantes de outras religiões. 

-Quebradeiras de coco de babaçu – comunidades tradicionais, sobretudo do Maranhão, que vivem da extração do babaçu.

-Raizeiros – são povos versados no uso de plantas e raízes medicinais.

-Retireiros do Araguaia – são comunidades que chegaram às margens do rio Araguaia por volta dos anos 1940.

-Ribeirinhos – são comunidades tradicionais que habitam as margens dos rios

-Vazanteiros – são povos do Cerrado que vivem próximos dos rios São Francisco e seus afluentes. 

-Veredeiros – vivem nas veredas, partes específicas do bioma Cerrado

 

Você encontra informações mais detalhadas sobre cada segmento no site do ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima. 

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A Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais diz que todos esses segmentos têm direito a permanecer nos territórios que ocupam há gerações — e que exploram de maneira sustentável. Cabe ao Estado garantir que esse direito seja respeitado. Na prática, no entanto, somente povos indígenas e quilombolas contam com procedimentos de reconhecimento territorial bem descritos. E, mesmo nesses dois casos, os processos de demarcação territorial costumam ser lentos e falhos.

No caso dos povos indígenas, o processo de demarcação é conduzido pela Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai). Nos cálculos da Funai, há 726 terras indígenas já no país, das quais 464 já foram demarcadas (foram homologadas ou regularizadas, as duas últimas fases de um longo processo demarcatório). O direito originário dos indígenas às suas terras é reconhecido na Constituição Federal de 1988. A Carta previa que todas as demarcações deveriam ser concluídas até 1993. O processo, no entanto, avança a passos lentos, e sob a oposição de setores políticos e econômicos. Nesse texto, Brasil de Direitos conta melhor essa história. 

Já o reconhecimento dos territórios quilombolas fica a cargo do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) ou de órgãos equivalentes estaduais. Uma projeção feita pela organização de direitos humanos Terra de Direitos e pela Coordenação Nacional de Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq) estima que, se a regularização fundiária de territórios quilombolas seguir no ritmo atual, serão necessários mil anos para que todos os quilombos sejam titulados. https://terradedireitos.org.br/noticias/noticias/no-atual-ritmo-brasil-levara-mil-anos-para-titular-todas-as-comunidades-quilombolas/23023

 Quanto aos demais 26 segmentos, vigora um limbo jurídico: o decreto de 2007 reconhece que eles têm direito aos seus territórios tradicionais. Mas não há regras federais que descrevam como assegurar essa garantia. “Há legislações em alguns estados que buscam promover os direitos dessas populações”, diz André Moraes, geógrafo do ISPN. “Mas nada em nível federal”. 

Ele conta que existe uma movimentação, encabeçada por movimentos sociais e organizações da sociedade civil, que cobra a criação de um decreto – ou outro instrumento legal – prevendo a regularização dos territórios tradicionais.  “Ainda assim, será uma legislação generalista para atender as necessidades de 26 segmentos”, lembra Moraes. 

Além da inexistência de um arcabouço legal que garanta a regularização de seus territórios, os povos e comunidades tradicionais enfrentam um problema anterior: “Não sabemos quantas dessas comunidades existem no Brasil”, diz Isabel de Castro, pesquisadora do Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (Ipam). 

A Convenção 169, da Organização Internacional do Trabalho (OIT) – um tratado do qual o Brasil é signatário – estabelece que povos e comunidades tradicionais devem ser consultados sempre que se pretender realizar algum tipo de empreendimento que impacte os territórios que ocupam. Esse dispositivo é chamado de Consulta Livre, Prévia e Informada, e deve ser um dos componentes do licenciamento ambiental de uma grande obra. É comum que ele seja burlado: não raro, empresas privadas deixam de fazer esse tipo de consulta sob o argumento de que não há registros oficiais da presença de comunidades tradicionais na região. “O mais comum é que os governos estaduais, de fato, não tenham esses registros. Não saibam onde estão essas comunidades”, conta Moraes. 

Essa falta de dados lança as comunidades tradicionais numa situação de invisibilidade que as deixa vulneráveis a violações. Algumas iniciativas encabeçadas pela sociedade civil tentam preencher essa lacuna de informações. Caso da Plataforma de Territórios Tradicionais. Fruto de uma parceria entre o Conselho Nacional de Povos e Comunidades Tradicionais (CNPCT) e o Ministério Público Federal (MPF), ela disponibiliza dados georeferenciados das comunidades cadastradas. Há também o aplicativo Tô no Mapa, que permite às comunidades fazer seu automapeamento. Moraes (do ISPN) e Castro (do Ipam) estão entre os coordenadores do projeto, do qual Brasil de Direitos é parceira de divulgação. 

 

Seu Raimundo Ribeiro no interior de sua casa de taipa no Quilombo Macacos. Foto: Cássio Bezerra/Acervo ISPN

Seu Raimundo Ribeiro no interior de sua casa de taipa no Quilombo Macacos. Foto: Cássio Bezerra/Acervo ISPN

Quais as principais ameaças enfrentadas por povos e comunidades tradicionais

No Fecho de Bonito de Cima, Souza conta que sente saudades dos tempos de infância, quando era possível andar pelos “gerais” sem jamais dar de cara com uma cerca. Hoje, diz ele, o que sempre foi terra de uso comum acabou sendo transformado num território recortado por grandes fazendas. “O agronegócio foi nos encurralando”, diz. 

Pela cidade de Correntina, onde fica Bonito de Cima, passa o Anel da Soja – um conjunto de rodovias que, no oeste baiano, conectam municípios produtores do grão. Por ali, as fazendas se expandiram às custas das comunidades tradicionais que viviam na área. “Os fazendeiros nos expulsam dizendo que compraram as terras”, diz Souza. “Mas compraram como? Compraram de quem, se elas nunca tiveram donos?”. 

O avanço da sojicultura na região, lembra Souza, foi permeado por conflitos. Em alguns casos, fatais. 

Trata-se de uma história que se repete pelo Brasil. A Comissão Pastoral da Terra (CPT), que mapeia casos de violência no campo, contabilizou 2185 ocorrências em 2024, de acordo com seu relatório mais recente. Nem todas essas violações envolvem comunidades tradicionais, claro. Mas o quadro geral aponta para um ambiente conflagrado: segundo a CPT, o número de conflitos progrediu numa curva ascendente ao longo da última década, com breves recuos num ano ou outro. 

Conflitos no campo (Fonte: CPT)

Conflitos no campo (Fonte: CPT)

A região que concentra o maior número desses conflitos corresponde a uma área do cerrado que se estende pelos estados do Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia, conhecida pelo acrônimo Matopiba. É justamente nessa área que se localiza o Capão do Modesto. 

Além do conflito pela posse da terra, as últimas décadas também viram se acirrar as disputas por água. Das comunidades cadastradas no Tô no mapa, por exemplo, 18% disseram ter vivenciado algum conflito por água em anos recentes. 

 

Qual a importância de povos e comunidades tradicionais para a preservação ambiental

Pode parecer contraintuitivo, mas as florestas ocupadas por povos e comunidades tradicionais são aquelas onde a vegetação nativa se encontra mais preservada. Esse raciocínio, inclusive, vale para todos os biomas brasileiros: se aplica a áreas florestais ou de savana, como o Cerrado. A conclusão consta em um estudo publicado em 2022 pelo Instituto Socioambiental (ISA). 

A partir de dados colhidos pelo projeto Mapbiomas, os pesquisadores do ISA avaliaram a cobertura vegetal existente nas várias unidades de conservação (UCs) espalhadas pelo país. Em algumas delas, há populações tradicionais. Noutras, essas comunidades não são permitidas. A avaliação concluiu que as áreas onde há comunidades tradicionais têm uma porcentagem maior do território coberto por vegetação: 94%, contra 87% daquelas UCs onde não existe ocupação tradicional. https://acervo.socioambiental.org/sites/default/files/documents/m9d00064.pdf

“Povos e comunidades tradicionais são agentes prioritários para a preservação de ecossistemas”, afirma Moraes, do ISPN. “Já há uma vasta bibliografia mostrando que é a presença deles que mantém a floresta em pé”. 

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É esse o desejo dos moradores de Bonito de Cima. Souza costuma lembrar que, nos tempos de criança, ele andava pelos gerais se empanturrando de frutos. “Tinha isso pequi, caju do cerrado, buriti”, conta. “A fartura era tanta que, quando a gente levava o gado para pastar, nem precisava preparar almoço. Comia o que encontrasse pelo caminho”. 

Desde então, o cenário mudou. A água escasseia e a vegetação é menos variada. Cerca de cinco anos atrás,  os moradores de Bonito de Cima e de outras comunidades tradicionais próximas criaram uma associação. Seu objetivo é cobrar, junto ao poder público, que as terras comunais de que a comunidade depende sejam reconhecidas como um território tradicional. A medida é importante para preservar o ecossistema local. “O que queremos é manter o cerrado em pé”, afirma. 

Esse reconhecimento é essencial, também, para manter viva a cultura da região. Ao longo dos quase 40 anos de vida, Souza diz que já viajou por quase todo o Brasil, sempre a trabalho. Às vezes como pedreiro, às vezes como peão, acompanhando o rebanho de algum fazendeiro. “Mas nunca vi nada tão lindo quanto isso aqui”, garante. “Tenho duas filhas. Meu sonho é que elas passem a vida aqui também”.

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