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Tráfico de drogas: a pior forma de trabalho infantil que recai sobre a juventude negra e periférica

Quase 30% dos adolescentes privados de liberdade cumprem pena por infrações relacionadas ao tráfico de drogas. Racismo e ausência de políticas públicas empurram jovens para atividades insalubres e perigosas. Proteção integral é chave para enfrentar o problema

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Coalizão pela Socioeducação

6 min

Quase 30% dos adolescentes privados de liberdade cumprem pena por infrações relacionadas ao tráfico de drogas. (Foto: Coalizão pela Socioeducação)

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No dia 12 de junho, data nacional de combate ao trabalho infantil, é necessário escancarar uma de suas expressões mais invisibilizadas e, ao mesmo tempo, mais cruéis: o envolvimento de crianças e adolescentes nas dinâmicas do tráfico de drogas. Trata-se de uma realidade que não pode ser compreendida fora do contexto das desigualdades estruturais, da negação sistemática de direitos e da seletividade penal que recai, historicamente, sobre a juventude negra, pobre e periférica no Brasil.

Os dados mais recentes da PNAD Contínua (IBGE, 2023) revelam que o Brasil encerrou o ano com mais de 1,6 milhão de crianças e adolescentes entre 5 e 17 anos em situação de trabalho infantil. Embora haja uma redução em relação aos anos anteriores, esses números escancaram a permanência estrutural do problema, profundamente atravessado por desigualdades raciais, sociais e territoriais.

Quase 7 em cada 10 crianças e adolescentes em situação de trabalho infantil são negras. As regiões Norte e Nordeste concentram as maiores taxas, revelando que pobreza, racismo estrutural e ausência de políticas públicas formam o pano de fundo que empurra meninas e meninos para trabalhos precoces, insalubres e perigosos.

>>Leia também: 1º de maio: no sistema socioeducativo, profissionalização deveria ser eixo de reintegração social

O tráfico de drogas como engrenagem da exploração infantil

Entre as atividades classificadas como piores formas de trabalho infantil — aquelas que colocam em risco a vida, a saúde, a integridade física e psicológica, e violam outros direitos fundamentais — o tráfico de drogas ocupa um lugar central, especialmente nas periferias urbanas.

Embora o tráfico não apareça formalizado nas estatísticas tradicionais sobre trabalho infantil por ser uma atividade ilícita, sua presença é concreta e fartamente documentada. Dados do Levantamento Nacional do Sinase (2023) mostram que 27% dos adolescentes privados de liberdade cumprem medida socioeducativa por ato infracional análogo ao tráfico de drogas. A maioria deles — 72,9% — são pretos ou pardos, e 42,8% sequer concluíram o ensino fundamental.

Esses números não surgem por acaso. Eles são a expressão direta de um modelo de desenvolvimento que, historicamente, distribui privilégios para poucos e precarização para muitos, aprofundando desigualdades raciais, econômicas e territoriais. Onde faltam escolas de qualidade, oportunidades de trabalho digno, acesso à cultura, saúde e segurança alimentar, sobra o peso da criminalização da pobreza e a presença ostensiva do Estado na forma de repressão armada e encarceramento.

>>Leia também: Brasil falha na proteção de crianças e adolescentes, aponta relatório da Comissão Interamericana de Direitos Humanos

Entre a fome, o risco e a ausência de escolhas

Visita a unidade do sistema socioeducativo. Quase 30% dos adolescentes privados de liberdade cumprem pena por infrações relacionadas ao tráfico de drogas. (Foto: Coalizão pela Socioeducação)

Visita a unidade do sistema socioeducativo. Quase 30% dos adolescentes privados de liberdade cumprem pena por infrações relacionadas ao tráfico de drogas. (Foto: Coalizão pela Socioeducação)

Para milhares de crianças e adolescentes, o envolvimento no tráfico não é fruto de uma escolha, mas de uma imposição de contexto. Essa é uma infância atravessada pela precarização e pela violência. Dados do UNICEF e Fórum Brasileiro de Segurança Pública (2024) mostram que 83,6% das vítimas de mortes violentas na faixa dos 15 aos 19 anos são negras, e que, entre 2020 e 2022, 9.328 crianças e adolescentes negros foram assassinados no Brasil. O Atlas da Violência (IPEA, 2023) também aponta que meninos negros têm uma taxa de homicídio 21 vezes maior que a de meninas brancas.

É nesse vazio deixado pela ausência do Estado que organizações criminosas ocupam espaço, oferecendo uma falsa ideia de pertencimento, alguma circulação de renda e sensação imediata de proteção — tudo atravessado por riscos constantes, violações brutais e, não raro, pela morte.

Crianças de até 7 anos já são recrutadas para funções como “olheiros”, transporte de drogas e armas, ou vigilância de territórios, segundo a Rede de Observatórios da Segurança (2023). Muitas vezes, reproduzem nas brincadeiras os códigos, práticas e simbologias do crime organizado, porque, naquele território, é essa a única referência concreta de acesso a poder, renda e algum tipo de reconhecimento.

A falácia da criminalização como proteção

Diante desse cenário, é evidente que criminalizar não é proteger. Ao contrário, é aprofundar o ciclo de violações. O Estado brasileiro, que falha sistematicamente na garantia de direitos básicos, é ágil e eficiente quando se trata de punir e encarcerar.

A chamada “guerra às drogas” nunca foi uma guerra contra substâncias, mas contra territórios e corpos. Ela legitima a militarização das periferias, o genocídio da juventude negra e o encarceramento em massa, enquanto esvazia o debate sobre políticas públicas que poderiam, de fato, romper esse ciclo.

O enfrentamento passa pela proteção integral, não pela punição

O tráfico de drogas é uma das piores formas de trabalho infantil, e enfrentá-lo exige reconhecer isso com seriedade. A saída não está no fortalecimento do sistema penal, mas na plena implementação da Convenção 182 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), que obriga os Estados a erradicar essas formas de exploração.

Isso significa, na prática, investir em:

  • Educação pública de qualidade, integral e antirracista;
  • Políticas de assistência social robustas e eficazes;
  • Geração de trabalho e renda para famílias em situação de vulnerabilidade;
  • Acesso à saúde, cultura, esporte e lazer;
  • Programas específicos de proteção a crianças e adolescentes em territórios mais impactados pela violência e pela ausência do Estado.

Proteger a infância e a adolescência  é romper com o ciclo de violência

A Coalizão pela Socioeducação reafirma que nenhuma criança ou adolescente pode ser responsabilizado por trajetórias construídas por um Estado que falha sistematicamente na proteção, mas é rápido na punição.

Proteger a infância significa garantir que nenhuma criança precise escolher entre a fome e o risco de morte. Significa assegurar acesso à educação, saúde, lazer, cultura e todas as condições que permitam construir futuros possíveis — fora das cadeias, das unidades socioeducativas e dos cemitérios.

Neste 12 de junho, Dia Nacional de Combate ao Trabalho Infantil, é preciso dizer com toda força: enfrentar o trabalho infantil é enfrentar também o tráfico de drogas enquanto uma de suas expressões mais perversas. E isso exige mais do que campanhas ou discursos — exige compromisso, políticas públicas, investimento social e a coragem de romper com modelos de desenvolvimento baseados na exploração e no racismo estrutural.

 

 

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