Vida digna na velhice também é direito humano
Em nossa cultura, a velhice é marcada por estereótipos e preconceitos. É fundamental olhar o tema pela ótica dos Direitos Humanos.
Instituto Bonina
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foto: Agência Brasil
por Lucia Secoti, do Instituto Bonina*
Foi emocionante ver a mobilização de diversos segmentos para celebrar a longeva Declaração Universal dos Direitos Humanos, que completou 75 anos, no último dia 10 de dezembro. As celebrações evidenciam a importância desse conjunto
normativo que, aprovado como resolução, aponta para o compromisso de construir um mundo melhor.
Mesmo sem ter um caráter vinculante, sem força coercitiva, a Declaração Universal dos Direitos Humanos, ao passar a ser invocada de vários modos, inspirou inúmeras constituições, como a nossa Constituição Federal, em 1988; além de tratados internacionais em direitos humanos.
>>Leia também: Idadismo – como superar esse preconceito silencioso
Celebrar a Declaração Universal dos Direitos Humanos é celebrar a vida e a dignidade para todas as pessoas, a justiça e a paz. É dizer que violar qualquer dos direitos estabelecidos na declaração é ameaçar os demais, é não contentar-se com a efetivação de um ou de outro direito, pois ela somente será plena quando nos comprometermos como sociedade com este pacto de humanidade. A forma universal, indivisível, interdependente e interrelacionada como a Declaração foi adotada deixa expresso que a efetivação de um direito depende da efetivação de todos.
Sendo assim, por que parece tão difícil, para tanta gente, entender os Direitos Humanos e seu significado? No preâmbulo da Declaração, fica claro que “o desprezo e o desrespeito pelos direitos humanos resultaram em atos bárbaros que ultrajaram a consciência da humanidade”.
Pensando comigo mesma, na provocação que faço no início do parágrafo anterior, lembro dos anos em que atuei em sala de aula. Um conteúdo trabalhado precisa ser exercitado. É preciso buscar, na reflexão individual e coletiva, a
prática transformadora. Como fazer isso? Nos livros didáticos, eu me lembro, logo depois do conteúdo, vinha a seção “Para fixação”.
Então, vamos lá: saindo da teoria vamos fazer um exercício prático. A proposta é simples e o exercício não tomará muito tempo. Vamos pensar em num dia normal nas nossas vidas ou na vida de alguém do nosso convívio. Temos uma família, uma nacionalidade, um teto, um lugar para repousar, alimentos para consumir, saímos para trabalhar, para estudar. Podemos programar um passeio. Sindicalizar-se. Fazer viagens nacionais ou internacionais com a garantia de retorno ao país. Esta realidade pertence a todos? Sabemos que não. Esse exercício nos ajuda a lembrar que, como escreve Kate Nash – professora de Sociologia do Goldsmiths’ College da Universidade de Londres – são universais em princípio – e amplamente desconsiderados, abusados e violados na prática.
Os Direitos Humanos da pessoa idosa
Para compreender o que os direitos humanos podem fazer para melhorar a vida das pessoas e nos mover um pouco mais próximos de nossos ideais de justiça, é necessário entender as demandas por direitos humanos em seus contextos históricos e geográficos específicos.
A questão do envelhecimento, que é plural e diverso, é uma questão que envolve a todos e é fundamental olhar o tema do envelhecimento pela ótica dos Direitos Humanos.
Em nossa cultura, a velhice e o tema do envelhecimento são marcados por estereótipos e preconceitos, que vão desde as ideias de incapacidade, inutilidade até a exclusão de espaços públicos, das formas de convívio e do
exercício de atividades profissionais (Uchôa, 2022; Debert; Pulhez, 2017).
Portanto, para a atenção à pessoa idosa e a garantia de seus direitos, é importante frisar o reconhecimento de que todos os direitos humanos e as liberdades fundamentais existentes se aplicam às pessoas idosas, e que esta população deve gozar
plenamente deles em igualdade de condições com os demais, como estipulado na Convenção Interamericana.
Há um ano, em 10/12/2022, foi publicado, em outro portal, um texto no qual escrevi sobre “Pessoa Idosa e o futuro governo Lula-Alckmin: os desafios de envelhecer no Brasil”. Desafio para os indivíduos, para a sociedade e para o governo. No final do texto publicado em dezembro de 2022, finalizava o artigo dizendo que: “a forma de pensar e agir do novo governo, em relação ao envelhecimento, ditará o quão moderno será o Brasil do Futuro e no futuro.”
Faço esta digressão para externar o enorme estarrecimento, preocupação e indignação diante do diagnóstico apresentado no relatório do governo de transição, onde em nenhum momento a pessoa idosa é contemplada. No consolidado apresentado, foram apresentadas sugestões de medidas para revogação e revisão de atos contrários aos direitos de diversas medidas políticas. Os direitos da pessoa idosa não foram incluídos.
Ato contínuo, pesquisei as revogações e revisões de atos, tomados durante o governo Bolsonaro, que limitaram o Direito de Participação Social. (Como contamos na Brasil de Direitos, em abril de 2019, o então presidente Jair Bolsonaro editou um decreto que excluiu conselhos de políticas públicas e órgãos colegiados ligados à administração federal. Ao decreto de abril, seguiram-se outros, que alteraram a composição dos colegiados remanescentes. Caso do Conselho Nacional dos Direitos da Pessoa Idosa).
Retornando ao relatório do governo de transição, o documento propunha a revogação do Decreto n. 9759/2019, cujo teor visava a redução da participação social em todo o governo. Propunha, ainda, a edição, pelo Presidente da República, de um despacho de orientação aos Ministérios para que fossem revistos os teores de decretos que tinham alterado a composição e o funcionamento de conselhos de políticas públicas.
Mais uma vez, o colegiado que há quase duas décadas tem por missão a defesa dos direitos das pessoas idosas foi preterido. O Decreto n. 9.893/2019 – colegiado sobre as pessoas idosas, estranhamente, não foi relacionado entre as medidas que deveriam ser revistas. Editado em junho de 2019, ele alterou a composição do Conselho da Pessoa Idosa, então presidido por mim, e destituiu seus membros. Apesar de ter sido deliberado em uma reunião de escuta, realizada por videoconferência, com o Grupo Técnico de Direitos Humanos do Gabinete de Transição Governamental Direitos Humanos – Pessoas Idosas, em 21/11/2022, que fez o levantamento das demandas da pessoa idosa e indicou a imediata necessidade da revogação do D. 9893/2019 e, como já pontuado acima não constou do relatório final do governo de transição. Para quem não teve chance de ler o relatório de dezembro de 2022, nem a revogação deste arbitrário decreto, exarado por um governo autoritário, em 2019 e nada referente às políticas públicas voltadas à população idosa.
Essa ausência do segmento pessoa idosa no documento que definiu as diretrizes do governo que assumiu em primeiro de janeiro de 2023 se vê refletida na demora e na forma que se deu a revogação do Decreto 9.893/2019, que chegou a ser base para estruturar a área no atual Ministério dos Direitos Humanos e Cidadania.
É oportuno, neste momento que refletimos sobre os direitos humanos das pessoas idosas e que há menos de um mês celebramos a longeva Declaração Universal dos Direitos Humanos, retomar a perspectiva e o preceito básico plasmado em 1996 no primeiro Programa Nacional dos Direitos Humanos: “Não há como conciliar democracia com as sérias injustiças sociais, as formas variadas de exclusão e as violações reiteradas aos direitos humanos que ocorrem em nosso país”.
E, aqui, eu, nesse momento exercito minha liberdade de expressão e opinião e finalizo, com a primeira consideração escrita na Declaração Universal dos Direitos Humanos – que o reconhecimento da dignidade inerente a todos os membros da família humana e de seus direitos iguais e inalienáveis é o fundamento da liberdade, da justiça e da paz no mundo.
Brasil, não nos esqueçamos o que os dados apontam: já é amanhã para o envelhecimento populacional.
Esperançar!
(Nota do Editor: hoje, o Conselho Nacional dos Direitos da Pessoa Idosa está em funcionamento. O decreto ao qual a autora se refere foi revogado pelo pelo Decreto nº 11.483, de 2023, que redefiniu sua composição. Hoje, o órgão é formado por 18 conselheiros indicados por ministérios, e por outros 18 conselheiros vindos de organizações da sociedade civil. Os conselheiros destituídos em 2019, no entanto, não foram reconduzidos ao colegiado. Em nota publica, divulgada em abril de 2023, os ex-presidente e vice-presidente do Conselho afirmaram que a recriação do colegiado foi feita sem a devida consulta e participação da sociedade civil. A nota está disponível online).
* Presidente e fundadora do Instituto Bonina, Lúcia Secoti é professora, mestre em gerontologia e consultora na área do envelhecimento e participação social. Foi presidente do Conselho Nacional dos Direitos da Pessoa Idosa (CNDI). Integrante da Comissão Arquidiocesana da Pastoral da Pessoa Idosa – Campinas/SP. Ex-vice-presidente do Conselho Municipal do Idoso de Campinas e ex-conselheira do Conselho Estadual do Idoso CEI/SP. Ex- Integrante de Comissões no Conselho Nacional dos Direitos Humanos (CNDH).
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