Quando a energia polui menos, mas viola direitos humanos
Relatório analisa casos de comunidades ameaçadas por se opor a projetos de energia renovável. Países com maior potencial para a transição energética estão entre aqueles que mais limitam espaço cívico

Rafael Ciscati
6 min

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O Quilombo do Cumbe, no Ceará, é uma comunidade pesqueira fundada no final do século XVIII por pessoas que fugiam da escravidão. Sua localização é estratégica: próximo ao mar, de um mangue e de dunas que represam água, formando grandes lagoas. Por gerações, os quilombolas do Cumbe viveram da pesca artesanal e da coleta de frutos nativos, que eles consumiam e vendiam. Esse cotidiano mudou em 2005: pelo rádio, os quilombolas do Cumbe descobriram que, ao lado de suas casas, seria construído um parque eólico. Sobre as dunas do quilombo, foram erguidos aerogeradores: os imensos postes cujas hélices giram para produzir energia elétrica a partir da força dos ventos. Os quilombolas perderam acesso à praia onde pescavam (retomado somente anos depois) e foram obrigados a abrir mão de metade de seu território ancestral.
O caso do quilombo do Cumbe é um dos quatro analisados pelo relatório Energias renováveis e represálias. O documento, lançado nessa terça-feira (29), explora os impactos negativos provocados por empreendimentos de energia renovável (eólica, solar e hidrelétrica) em comunidades do Brasil, Honduras, Moçambique e Filipinas. Destaca, ainda, os riscos enfrentados por defensores de direitos humanos que se opõem a tais projetos, quando realizados sem a devida consulta às comunidades afetadas.
A pesquisa foi realizada pela SwedWatch, uma organização Sueca que analisa os negócios praticados por empresas europeias nos países em desenvolvimento. Contou com a colaboração de organizações de cada um dos países pesquisados — no Brasil, o Instituto Terramar.
O documento mostra como, nesses quatro países, projetos de energia renovável são acompanhados por violações aos direitos das populações locais. Como no caso do quilombo do Cumbe, vários dos conflitos envolvem disputas pelo uso do território. “As experiências de projetos extrativistas mostram que os setores que dependem de recursos naturais muitas vezes competem com as comunidades e os povos indígenas por terras e recursos vitais para sua subsistência, alimentação e sustento”, destaca o relatório.
Há o agravante, segundo a pesquisa, de que vários desses projetos são desenvolvidos em países onde a atuação da sociedade civil sofre restrições.
A equipe da pesquisa chegou a essa conclusão depois de cruzar duas bases de dados: primeiro, listaram os países com maior potencial para geração de energias renováveis; a seguir, examinaram qual a pontuação recebida por esses lugares na plataforma de monitoramento da organização Civicus. Essa ferramenta analisa as liberdades civis em 196 países e lhes atribui pontos, de 1 a 100, de acordo com a disposição de cada um desses lugares para proteger e promover direitos fundamentais.
Dos 20 países com maior potencial para geração de energia eólica, por exemplo, somente cinco receberam mais de 80 pontos e são considerados países de espaço cívico aberto. Nos 15 demais, há limitações à atuação da sociedade civil. “Nesses locais, os ativistas que denunciam as violações dos projetos frequentemente enfrentam assédio, perseguição legal e, em alguns casos, até mesmo violência mortal”, afirma o relatório.
Em Honduras, por exemplo, a construção de uma fazenda de energia solar veio acompanhada pela intimidação da população local. Defensores críticos ao projeto relatam ser vítimas de campanhas de difamação, e contam que vêm sendo monitorados por drones. Nas Filipinas, o exército atacou indígenas do povo Tumandok que se opõem à construção de uma hidrelétrica. Ao justificar os ataques, o governo filipino afirmou que pretendia desarticular “insurgentes comunistas”.
A pesquisa serve de alerta. Mudar a forma como produzimos energia — de modo a reduzir a emissão de gases poluentes — é essencial para mitigar a crise climática. O setor de energia renovável precisa triplicar até 2030 se o mundo quiser cumprir a meta climática de limitar o aquecimento global a 1,5 °C acima dos níveis pré-industriais. Mas é fundamental garantir que essa transição aconteça promovendo os direitos e o bem-estar das populações — e não à revelia deles.
A pesquisa completa pode ser lida no site do Instituto Terramar ou na página da SwedWatch (em inglês).
Em tempo: no final do ano passado, Brasil de Direitos contou a história do quilombo do Cumbe em um dos vídeos da série Que bom que você perguntou. O episódio discute o conceito de Transição Justa, e aponta caminhos para viabilizá-la.
Quem quiser saber mais sobre a crise climática pode, ainda, acessar a nossa lista de perguntas e respostas sobre o aquecimento global.
O tráfico de drogas nas fronteiras amazônicas

O porto de Santo Antônio do Iça, no Amazonas. Rio serve como via de escoamento para o tráfico de drogas (foto: Wikimedia Commons)
As fronteiras amazônicas de Brasil, Peru, Colômbia e Equador despontam, hoje, como uma das rotas mais movimentadas do tráfico de drogas em todo o mundo.
Nessa região de grandes rios, onde é possível cruzar de um país a outro sem passar por postos de controle alfandegário, a presença do tráfico já foi identificada em 70% das localidades. Uma delas é o município amazonense de Santo Antônio do Içá. Ali deságua o rio Iça, cujas águas cruzam os quatro países e servem de via de escoamento para a cocaína que chega ao Brasil (e que segue, daqui, para Europa e África).
Hoje, além de traficar drogas, as facções também dominam o crime ambiental: se envolvem na pesca ilegal e exploração irregular de madeira.
Em tempo: Foi nessa região de fronteira (só que um tanto mais ao Sul, na terra indígena Vale do Javari) que o indigenista Bruno Pereira e o jornalista Dom Philips foram mortos, em 2022, por criminosos envolvidos com pesca ilegal. A violência ameaça, ainda, lideranças indígenas. Naquele mesmo ano, Brasil de Direitos conversou com Paulo Marubo, liderança da União dos Povos Indígenas do Vale do Javari (Unijava). Ele contou que recebia ameaças de pistoleiros baseados em Tabatinga (cidade mais a oeste de Santo Antônio do Iça, subindo o rio Amazonas em direção à Colômbia). “Ofereceram R$80 mil pela minha cabeça”.
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